Os cavaleiros da praga divina, de Marcos Rey

por Marco Severo*

Marcos Rey (1925-1999) era um garoto de pouco mais de vinte anos quando concluiu Os cavaleiros da praga divina (Global Editora, 176 páginas), em 1948. Ainda se passariam quase quatro décadas até que ele se tornasse o famoso escritor de livros juvenis, em 1981, e o autor adorado de clássicos da literatura brasileira, como Café na cama e Memórias de um gigolô.

Cavaleiros_Praga_Divina_capa - Pocket.inddEscrever sobre Os cavaleiros da praga divina é também, por vias tortas, contar um pouco sobre a história pessoal do próprio escritor, que ainda adolescente e portador de hanseníase, foi capturado como um bicho e levado a um asilo-colônia em Guarulhos. Relutante em escrever um livro de memórias sobre o assunto, apesar de tantas vezes estimulado por sua própria esposa e por seus editores, Marcos Rey guardou durante décadas as 233 páginas datilografadas do romance, que manteve inédito para a própria esposa: ela só poderia lê-lo após a sua morte.

O romance lida com as aventuras e desventuras de um bando de gateiros, nome dado a portadores de hanseníase que se tornam párias, mendigando pelas ruas. O grupo vaga pelo interior de São Paulo, para fugir da internação que, nas primeiras décadas do século XX, era compulsória no Brasil.

A narrativa nos leva a conhecer o bando formado por Lucas, Romão, Plutão e Quincas que formam um núcleo quase familiar em suas errâncias, montando e desmontando acampamentos, bebendo, conversando sobre seus medos e angústias. Apegados ao pouco que possuem, estes homens, suas mulheres e bichos seguem o destino da desesperança.

A vida árdua de todos os dias, as dificuldades de fugir da polícia do Departamento de Profilaxia da Lepra, o temido DPL, as diversas brigas e complicações em suas próprias relações, deixam claro que Rey queria fazer com que o leitor compreendesse como era a vida daqueles seres humanos legados a um destino à margem por conta de um destino severo. Porém, ao descrever os detalhes mais comezinhos da vida de seus protagonistas, como o apego a coisas simples, objetos que carregam para distraí-los e dos quais não se desfazem, como a lembrá-los de um tempo em que eram felizes, Marcos Rey mostra as nuances mais notadamente humanizadas dos gateiros.

Embora o livro nem de longe lembre grandes clássicos do autor – inclusive por seu tema espinhoso e sobre o qual o próprio Marcos Rey se recusava a falar abertamente – as marcas do grande autor já estão presentes na obra, que é, sobretudo, um libelo contra o estigma que a hanseníase carrega, e a tentativa de sua redenção através de uma narrativa dolorida, ainda que profundamente humana.

* Marco Severo é de Fortaleza, Ceará. Professor de inglês, tradutor, gosta mesmo é de escrever em português claro e de ler em todas as formas da língua. Autor dos livros Os escritores que eu matei (Editora Substância, 2015) e Todo naufrágio é também um lugar de chegada (Editora Moinhos, 2016).


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