Os filhos

* Adriane Garcia

Essa mulher marrom em cima do chão batido de barro tem seis filhos e mais um no bucho. Descasca, o dia inteiro, alho para uma fábrica de temperos.

O barracão tem quatro cômodos, sem contar com o banheiro, que é lá fora. No quarto ainda mora um cabrito trazido pelo menino do meio, que adora bicho. Se o dono do cabrito não aparecer, é dele; se aparecer, ele vai apanhar como da outra vez que trouxe um cavalo. As duas meninas da ponta arrumam a casa e ajudam a fazer de um tudo. A mais novinha só sabe andar nua e despejar catarro pelo nariz. Aprende palavras com a mais velha. Os outros dois meninos, pequeninos, ficam o dia todo alugados por uma vizinha gorda e bonachona que mendiga no centro. À tarde, ela os traz de volta com pão e leite.

A mais velha é briguenta. Enfrenta pai, mãe e o que vier pela frente. Não quer saber de comprar pinga em boteco. Nem pensar. Já é vista pelos rapazes e quer arrumar bom casamento. Um bom moço que seja comerciário. Debutou na igreja este ano junto com mais quatorze meninas. Festa toda organizada pelo pastor que tem prazer em ver as moças dançando.

O pai vive no boteco, gosta de jogar baralho e falar das mulheres que entram. Já deixou no jogo todo o dinheiro da descasca do alho desta semana. No mês passado, foram buscar a televisão velha dos meninos, que perdeu no carteado. Sempre perde. Mas sempre acha que da próxima vez irá ganhar. E quando volta para dormir, ou trepar com dificuldade com a mulher, não abre mão de ter uma cachaça por perto, caso não se anime a ir para o bar de manhã. Ele sabe que é pela manhã que começa a tremer.

Então, a segunda filha é que sai para trazer a garrafa para o pai.

Os homens mexem. Ela está mocinha também e tem a bunda empinada que herdou da avó negra. Querem bolinar com ela, imaginam-se sugando seus pequenos seios, sendo os primeiros a entrar naquela bocetinha que ainda parece de criança. Ela nem vê, compra a pinga e fica de olho nos chocolates que nunca compra. Um dia um homem lhe deu um chocolate, enquanto passava a mão entre suas coxas, por debaixo da saia. Ela deixou, nem respirou, achou que, se fizesse o menor movimento, perdia o chocolate. Os outros homens, vendo a cena, riam; dois deles excitados. Era uma aposta.

Se o pai não ficava nunca sabendo? Ficava. E entristecia-se por alguns segundos se não estava completamente bêbado. Mas rapidamente sanava a emoção incômoda pedindo para descer mais uma. E mais uma. Voltava carregado por colegas de bar que estavam um pouco menos bêbados que ele. E vomitava a casa inteira. O cabrito vinha, cheirava o vômito e saía de perto. A mulher tirava o grosso e o barro sorvia o resto. Depois ele começava a praguejar.

Certa tarde, a mulher simplesmente resolveu dar um basta. Proibiu a entrada de garrafa em casa e também que filha moça fosse em boteco buscar cachaça. E após algumas surras que ganhou por jogar a pinga fora, assim ficou decidido. Ia o menino de 8 anos. Vez em quando ele ouvia uma gracinha do dono do boteco: “A gente prefere que venha a sua irmã”. O menino, que já andava com a cabeça baixa, pedia para colocar no fiado, pegava a bebida e saía.

Em um fim de tarde, o pai levou a filha, a do chocolate. Não tinha mais o que perder no jogo de baralho e o dono do bar havia feito uma proposta boa para quem tinha uma conta e tanto pendurada. Ele tinha uns negócios de divertimento no interior, precisava de mocinhas e prometeu que cuidaria dela pessoalmente. “É um bem para ela, seu Naco. Vai tirar a menina dessa miséria.”

Ela gritou e lutou, antes de ser colocada na caminhonete. O pai deu um murro, envergonhado de aquilo durar tanto tempo. Ela calou. O dono do bar reclamou que não queria comprar ninguém de olho arroxeado.

A mulher, aflita, chegava de uma casa de madame onde foi passar roupa. Esperava para saber que novidade era essa de ele ter levado a menina para o bar. Quando o viu descendo a ladeira, sozinho, ela deduziu, ela pressentiu, sentindo lhe espremer o ventre.

Não percebeu, de longe, que ele chorava.

* Adriane Garcia é historiadora, arte-educadora, atriz e sobretudo escritora, em conto, crônica, teatro e poesia. Autora dos livros O nome do mundo e Só, com peixes, entre outras obras.