O novo escritor

* Adriane Garcia

Núlio acorda pela manhã, espreguiça com dificuldade, os olhos ardendo. Na noite anterior, até a madrugada, as conversas inbox com os amigos virtuais insones. Há três anos, tudo parecia mais interessante; com o passar do tempo, baixas e dissidências de gente que, Núlio admite, era mais interessante. Mas ninguém é insubstituível. É o que pensa, toda vez que precisa de consolo. O tiro, porém, sai pela culatra, Núlio cai em si mesmo, a dor da sentença atinge em cheio o seu narcisismo: ele também é ninguém. Com as mãos esfregando os olhos, Núlio tenta espantar a ideia, antes que o tempo de se aprofundar se estabeleça, estica o braço e alcança, do lado da cama, o aparelho celular. Nenhuma mensagem inbox, exceto a de seu próprio fake, polemizando com ele mesmo, para que possa printar e postar, gerar uma notícia. Quinze minutos de fama a cada quinze minutos, a meta difícil de Núlio, já que é a meta de seus 5 mil amigos.

De pé, Núlio liga o computador, faz o login na rede. Da madrugada para a manhã, onze curtidas. Núlio se entristece, talvez valha a pena sair um pouco da rede e continuar seu eterno livro de contos. Mas de que valeria um livro se ninguém conhecesse seu autor? Repete, rápido e ansioso, duas postagens de sua linha do tempo, como se fossem novas.

Segue para o banheiro, o mijo rápido, o som de alerta da rede, de algum comentário feito em uma de suas postagens, ativa a necessidade imediata de correr e ver o que é. Sim, deu certo a frase bombástica polemizando sobre um cânone, que, por sinal, ele nunca leu. Núlio tem pouco tempo para ler. Outro comentário na postagem em que seu fake o agride e, de quebra, agride as feministas. Enquanto ele, feministo, rebate o agressor. Funciona sempre. Núlio sorri para si mesmo.

A mãe lhe traz um café com biscoitos. Diz, com cuidado, que ele precisa arrumar um emprego. A resposta de sempre – “mãe, eu sou um escritor” – faz com que ela inspire profundamente, erguendo os ombros.

* Adriane Garcia é historiadora, arte-educadora, atriz e sobretudo escritora, em conto, crônica, teatro e poesia. Autora dos livros O nome do mundo e Só, com peixes, entre outras obras. Este ano assina a curadoria do Fli-BH (Festival Internacional de Literatura de Belo Horizonte).