Não verás país nenhum

Normalmente quando se fala do livro Não verás país nenhum (Global Editora), um dos clássicos da obra de Ignácio de Loyola Brandão, o papo vem acompanhado pelas palavras “distopia”, “ficção científica”, previsão do futuro até. Mas nada como ler um trecho para uma aproximação mais autêntica entre obra e leitor. Neste trecho já se pode vivenciar o que o livro todo é. Intenso.

Ao mesmíssimo tempo um deslocamento para um tempo qualquer no futuro, que tende a nos tirar da realidade, e também o movimento exatamente contrário de nos fazer ver a realidade em redor – entre o que não deveríamos viver e o que bem poderíamos – em pleno 2018, a partir de um texto publicado originalmente no início dos anos 80.

– Lembra-se de quando líamos os livros de Clark, Asimov, Bradbury, Vogt, Vonnegut, Wul, Miller, Wyndham, Heinlein? Eram supercivilizações, tecnocracia, sistemas computadorizados, relativo – ainda que monótono – bem-estar. E, aqui, o que há? Um país subdesenvolvido vivendo em clima de ficção científica. Sempre fomos um país incoerente, paradoxal. Mas não pensei que chegássemos a tanto. O que há em volta de São Paulo? Um amontoado de acampamentos. Favelados, migrantes, gente esfomeada, doentes, molambentos que vão terminar invadindo a cidade. Eles não se aguentam além das cercas limites. Não há o que comer!

– Bom, Tadeu. Sua cabeça continua igual. Pensei que você estava derrotado. Vejo tua cabeça funcionando, funcionando. Speed. Era o teu apelido. Speed. Por causa da tua cabeça, a mil por hora. Foi o tempo em que palavras inglesas substituíam tudo.

– Vamos tomar café? Você tem ficha?

– Gasto a de amanhã…

– Quando olho essas cartelinhas de fichas, tenho a impressão de cartelas de anticoncepcionais. O dia determinado para cada café. Aonde chegamos, hein? E gente como nós tem culpa, Souza!

– Espera lá. Se aposentaram a gente, foi por alguma coisa.

– Ficamos assustados com a aposentadoria. Recuamos. A mim custou um bom tempo para recuperar a normalidade. Eu não conseguia emprego em lugar nenhum. Os meninos estavam grandes, foram trabalhar. Vendi a casa, fui para um apartamentinho. Diminuí gradualmente o nível de vida.

– Quem não diminuiu? O nível neste país ficou abaixo do nível.

– Sempre ruim para piadas, hein, Souza? Você era um chato. Só contava piada sem graça.

Serviram as xícaras de café. Pó solúvel ralo, meia colher de açúcar para cada um. Ao menos, quase todo mundo deixou de comer açúcar, coisa desnecessária. Havia uma porção de garçonetes. Uma colocava o pires, outra a xícara, a terceira despejava a dose exata de açúcar, outra o café, outra a água.

Trecho – página 109

 

Quem é Ignácio de Loyola Brandão?

Ignácio de Loyola Brandão nasceu em Araraquara em 1936. Jornalista e escritor, passou pelas redações de Última hora, Claudia, Realidade, Planeta, Lui, Ciência e vida e Vogue. Tem mais de 40 livros publicados, entre romances, contos, crônicas, viagens (Cuba e Alemanha) e infantis. Entre seus romances mais conhecidos, estão Bebel que a cidade comeu, Zero, Não verás país nenhum, O beijo não vem da boca, Dentes ao sol, O anjo do adeus e O anônimo célebre.

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