O poeta e outras crônicas de literatura e vida, de Rubem Braga

* por Marco Severo

A memória pode ser a casa de muitas coisas.

A minha, que nunca foi lá um refrigerador daquela marca famosa, guarda com carinho apenas o que outros dizem que se guarda – ou se enxerga – com o coração: aprendi a gostar de ler justamente em coletâneas publicadas nos anos 80 que reuniam crônicas de Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade. Era sentar com um dos delgados volumes contendo as crônicas dos quatro e ter a certeza de que eu esqueceria do mundo. Três décadas se passaram desde aquelas primeiras leituras de infância, e sempre que eu quero voltar para casa, é a um deles que recorro com o coração, atendendo ao pedido de socorro da memória.

Por isso que aguardei com a expectativa de uma criança que desejou de natal uma bicicleta daquela outra marca, também então famosa, pelo volume de crônicas em que Rubem Braga escreveu sobre seus congêneres, por assim dizer – e prometi a mim mesmo que não esqueceria de lê-lo tão logo fosse lançado. Assim procedi.

O poeta e outras crônicas de literatura e vida em muitas medidas se assemelha a um livro de memórias, sobretudo porque passeia por elas com desenvoltura e reconfigura, para o tempo presente, o próprio ato da escrita, do fazer literário entre as décadas de 40 e 80 (a última crônica do livro foi escrita apenas dois anos antes da morte do autor), e do que isso significou para aquele tempo: é uma maneira quase arqueológica para entendermos a literatura que se faz hoje, ou como chegamos a ela.

O baú de memórias do Rubem Braga começa com uma afetiva lembrança de Monteiro Lobato, na qual ele rememora seu primeiro contato com o autor, deixa claro que foi Lobato quem lhe abriu as portas quando ele chegou em São Paulo, e termina, depois de contar alguns “causos”, num tom de suave gratidão.

Em seguida é a vez de José Lins do Rego, o autor de Menino de Engenho, ser o tema de um texto. Rubem nos leva até a Paraíba onde nasceu o autor dos livros encerrados sob o termo “ciclo da cana-de-açúcar”, para participarmos com ele de um jantar que compartilharam – e tudo isso sob a égide da simplicidade, que tantou permeou a literatura tanto de um quanto do outro: amigos.

O tempo avança e em seguida nos deparamos com Graciliano Ramos, “esse grande pessimista de coração de menino”, segundo nos diz Braga. Aqui, as lembranças se voltam para o tempo em que ambos moravam na mesma pensão. O que se passou por lá? Você vai ter que ler o livro pra saber, não se pode contar tudo.

A divertidíssima crônica O poeta nos leva, depois de atravessarmos uma feira de rua, até o endereço de Carlos Drummond, onde o encontraremos sem camisa, a responder cartões de boas-festas numa luta com o calor inclemente, num Rio de Janeiro que passava por uma escassez de água na década de 50.

No mesmo tom de elegante mas informal conversa, nos encontramos também com Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Joel Silveira, Sérgio Milliet, Stanislaw Ponte Preta, José Olympio, Mário Quintana… Todos retratados em momentos cotidianos, trazidos para nós, leitores, a partir de seus escritos, numa convergência perfeita entre as delicadas tessituras de Rubem Braga e o universo daqueles que resolveu homenagear. Eis aí um livro para ser lido com o sabor que só as boas histórias sabem contar.

* Marco Severo é de Fortaleza, Ceará. Professor de inglês, tradutor, gosta mesmo é de escrever em português claro e de ler em todas as formas da língua. Autor dos livros Os escritores que eu matei (Editora Substância, 2015) e Todo naufrágio é também um lugar de chegada (Editora Moinhos, 2016).


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