A carnavalização de Manuel Bandeira

Em 1918, o Rio de Janeiro passou por maus bocados por conta da gripe espanhola que castigou a população. Conta-se que, passada a tragédia que assolou a cidade, as festas carnavalescas do ano seguinte foram momentos intensos de renovação, aproveitados até seus últimos instantes para lavar a alma. Curiosamente, em 1919, Manuel Bandeira publicaria seu segundo livro, Carnaval, o qual guarda uma importância sublime em sua obra poética. Em 2019, a obra faz 100 anos.

Em Carnaval, o poeta de Pasárgada brinda o leitor com o poema “Os sapos”, que, para boa parte da crítica literária, representaria o primeiro indício modernista na poética bandeiriana, com uma boa dose de oralidade.

Nesse livro, o arranjo composto para poetizar a Folia de Momo articula lirismo, ironia e picardia, em versos que se notabilizaram, como os de “Pierrot místico” e “Rondó de Colombina”.

“Rondó de Colombina” no jornal Correio da Manhã em 2 de março de 1930.

Esta 3ª edição, coordenada por André Seffrin e com apresentação de Affonso Romano de Sant”Anna, traz no início algumas fotos do poeta e a imagem da primeira edição do livro. Além disso, conta com o poema “Rondó de Colombina”, publicado no jornal Correio da Manhã em 1930.

Para Affonso Romano, a obra vai além. Com riqueza de símbolos e recados subliminares, Bandeira se insere, aos 31 anos, na temática Carnaval, que fora alvo dos artistas na época. Entretanto, mais do que a temática, Bandeira apresenta uma estrutura profunda do texto, denominada carnavalização.

Em sua apresentação, Affonso Romano resgata o conceito da teoria da carnavalização, lançada pelo pesquisador russo Mikhail Bakhtin, para explanar a importância dessa obra, que não fora aceita unanimemente pelos críticos literários da época e, inclusive, pelo próprio Bandeira. Carnaval foi escrito na passagem do século XIX para o XX. Alguns estudiosos da obra do autor apontam que nessa obra Bandeira está preso ao passado e se esforça por se aproximar da modernidade.

Affonso sugere aos leitores que, antes de iniciarem a leitura de Carnaval, pesquisem sobre a história de seus personagens temáticos. Essa pesquisa é fundamental para entender a simbologia por trás dos textos de Bandeira. “Ele não está reinventando nada, está dramatizando as ambivalências do homem católico de seu tempo, vagando entre santas e prostitutas, ora como um Pierrot choroso entre a Colombina perversa e pervertida, ora como o Arlequim irrequieto. Assim, ele percorre todos os matizes da sexualidade carnavalesca, até a bissexualidade do Pierrot/Pierrette.” aponta Affonso. Além disso, segundo o apresentador, não há como não invocar a presença da Commedia dell’arte italiana, que, a partir do século XVI, fixou algumas variantes da Colombina, do Arlequim e do Pierrot. “Há que estudar as “máscaras” italianas criadas por esse tipo de comédia. A figura do Arlequim, por exemplo, é bem mais complexa do que parece à primeira vista e sua vocação erótica está presa ao seu passado violento – de violentador de mulheres nas festas primitivas do solstício de inverno. E a festa carnavalesca de Bandeira é também perversa.”, completa.

Pierrot And Colombina, de Pablo Picasso. 1900.

 

O poema “Súcubo”, por exemplo, pode se referir tanto a pesadelo como a demônio, tentação. Descreve a tentação, a luxúria, a posse amorosa demoníaca desencadeada por uma mulher que lhe vem em sonhos. Isso é exemplo das fantasmagorias, daquela atmosfera de alucinações que a sátira menipeia sabia criar. Esse tema também é tratado no poema “Menipo”, que apresenta uma zombaria que tem tudo a ver com o carnaval. Tanto que a morte aparece tragicamente nas cenas carnavalescas. O carnaval é também o ritual no qual se quebram as normas e se perde o medo da morte.

Por meio da análise de textos de gaveta que o próprio autor menosprezou e que a crítica até hoje não soube dizer por que acabaram fazendo parte do livro Carnaval, Affonso Romano aprofunda a ideia de que Bandeira, mesmo sem conhecer a teoria da carnavalização, sabia o que estava fazendo, e também de que, de forma ainda mais criativa, o livro pode ser lido como se fosse uma peça de teatro.

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