Eu sozinha, de Marina Colasanti

Leia um trecho de Eu sozinha, de Marina Colasanti, lançamento da Global Editora.

Jamais hei de saber a imagem que os outros têm de mim. Eu me conheço dos espelhos, das fotografias, dos reflexos, quando meus olhos param para se olhar e a diferença de ângulos impede criar uma dimensão real. Não sei os movimentos do meu rosto. Nunca me vi pela primeira vez.

Em Asmara, onde nasci, não havia água; o aguadeiro passava várias vezes por dia com seu precário carro-cisterna puxado a burro, e as mulheres compravam a água na porta das casas. As casas, me disseram, eram sempre brancas, com um terraço em lugar do telhado. Tenho, assim, da minha cidade, uma impressão quente e seca, de grande claridade, onde o silêncio se estica como um toldo sob o revérbero.

Pela porta aberta entra a luz da rua, o barulho da rua; a rua entre pela porta formando um corredor de vida alheio à casa. A sala não tem dimensão.

Fechada a porta, a casa inteira fecha-se ao redor de si mesma, quatro paredes se erguem como a lona de um circo, e esta é uma sala dentro de uma casa. A força da porta fechada dá maior dignidade ao silêncio.

A casa é grande, o jardim, ao redor, imenso. Vi a casa uma vez do alto do Corcovado, e só então percebi quanto era isolada, a mancha negra da mata, mais escura que a noite, vindo desmanchar seus contornos quase a meus pés. Somente no centro, onde eu sabia ser o pátio, uma lâmpada acesa.

Quereria não mentir nunca; não trair ninguém; oferecer pureza como nunca houve. E já não sei onde ficou minha pureza: se se perdeu nas mentiras, ou se a mataram com a primeira traição.

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