Cecília Meireles pelo mundo

Crônicas de viagem é um conjunto de três livros em um lindo box, que reúne crônicas de Cecília Meireles publicadas na imprensa entre os anos 1940 e 1960. A poeta era uma grande viajante, escreveu, além das crônicas, diversos poemas e livros sobre as experiências em outras cidades do Brasil e outros países, como México, Índia, Estados Unidos, Portugal. Em muitos casos, uma mesma vivência é tratada nos dois gêneros, o que mostra a versatilidade de Cecília como autora, sendo única e grandiosa tanto em poema quanto em prosa.

 

Ela era delgada, branca e loura. Tinha dezessete anos. Estava toda de preto. Montava admiravelmente. Quando levantou a cabeça para agradecer os aplausos, sob as abas retas do chapéu, de tira passada pelo queixo, brilharam seus grandes olhos claros, exatamente como duas águas-marinhas.

Deu uma volta pela arena, exibindo por todos os lados sua esbelta e sóbria elegância. De costas, via-se-lhe a trança de ouro suave enrolada sobre a nuca. A multidão já começava a uivar. Um aficionado deu início ao espetáculo, atirando-lhe aos pés um ramo de flores.

Sendo tão delgada e branca e loura, ela me fazia pensar num modelo de santa gótica. Mas era toureira. Toureira.

trecho de “A bela e as feras”, volume I, pág. 20

Sair do ônibus é que constitui uma dura prova. Não é permitido tocar a campainha. O candidato deve esticar o pescoço na direção do condutor, e emitir, no ponto justo, um “pst, pst”, que é o sinal convencionado para exprimir seu desejo de saltar. Entre esse sinal e o ponto de parada, deve o candidato movimentar-se no meio da aglomeração, a fim de atingir a porta de saída. É muito difícil conseguir-se uma coincidência perfeita. De modo que, ao chegar à porta, o passageiro verifica que o ônibus já está em movimento, e volta a fazer “pst, pst”, resignando-se a esperar pela próxima parada. E o condutor continua a dizer “Adelante! Un poco de buena voluntad!”. (Para quem anda a passeio, e quando não tem hora marcada, é um espetáculo muito pitoresco.)

trecho de “Instantâneo de Montevidéu”, volume I, pág. 155

Esta cidade é cor-de-rosa porque os grandes edifícios, construídos de grés avermelhado, adquirem ao sol uma irradiação de aurora ou luminoso ocaso – e essa tonalidade, e o azul do céu, e os jardins verdes formam o cenário deslumbrante por onde passam, como em sonho, homens de turbantes multicores, mulheres de vaporosos sáris, crianças vestidas como ídolos, e essas carruagens que são a minha paixão, com uns cavalinhos quase alados, e que até parece que sorriem, todos enfeitados com penachos, colares, xailes e flores! (Ah! meus amigos, se tiverdes de reencarnar, e de vir – Deus vos proteja, mas quem sabe o que nos espera!… – de vir sob a forma de bicho, fazei o possível para serdes cavalinhos de Delhi! Tereis estes colares azuis, de contas grandes como ovos; tereis plumas encarnadas, cor-de-rosa e alaranjadas, no topete; arreios dourados, e flores nas orelhas… Tereis uma carruagem toda reluzente de negro, vermelho e ouro. E um cocheiro de turbante, que move o chicote por amor ao gesto, mas que não bate nunca… E tudo é como um bailado entre o céu e a terra, com belas moças recostadas, tintinantes de joias, que vão como nós para os lugares antigos, onde só se fala de Xá Jehan e de Aurang Zeb e do trono do pavão, que Nadir Xá roubou e levou para a Pérsia…)

trecho de “O deslumbrante cenário”, volume II, pág. 57

Quem gosta de mim, em Lisboa, leva-me à tardinha para Queluz, onde me encanta mirar os espelhos d’água do jardim, e os bosques, e os azulejos; onde me praz ter saudades de Dona Maria I, tão infeliz, na sua vida, mas tão bonita na sua estátua.

Certamente, eu prefiro estas sombras, estes caminhos verdes e úmidos, por onde me parece que crianças muito antigas brincam com pôneis e bolas; prefiro estas fachadas tão femininas, com suas flores e sua pintura rosada; mas a casa de chá, instalada nesta cozinha real, não é para desprezar; e estas iguarias douradas que nos esperam devem ser delícias de amêndoas, ovos e açúcar, “sonhos em casa”, “pupelinos”, “bolos à Delfina”, “talmussas” e “meringas” – do livro de receitas encontrado na Feira da Ladra, e há cerca de 150 anos publicado por um dos chefes da cozinha de Suas Majestades Fidelíssimas.

trecho de “O passeio inatual”, volume III, pág. 98

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