Alvenaria pulsante nas construções poéticas de Sérgio Vaz

Resenha de André Argolo
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Os últimos versos do poema “Flores de alvenaria” – o que abre e dá nome a esse novo livro de Sérgio Vaz – trazem o convite que representa a obra:

Cantemos em nossa festa:
bora lutar
bora ser feliz.

O prato principal que o poeta oferece ao leitor é o famoso “o que tem pra hoje”. E o que tem pra hoje é exatamente o agora, o momento, o presente.

Enquanto o futuro não se decide
o agora me parece uma boa opção.

Ele ataca de diferentes formas esse que é um dos temas principais, a busca por um estado de valorização da vida, ainda que dura. Não é fora de contexto, e o contexto nos é dado ao longo dos textos pelo poeta. Sérgio cresceu na periferia de São Paulo. Viu muitos amigos morrerem por causa da criminalidade – ou porque fizeram parte dela, sem camisa ou de farda oficial, ou então, do mesmo jeito, foram suas vítimas. Vivencia até hoje o estrangulamento das vias de oportunidades quando se aproximam das casas simples da Zona Sul de São Paulo. Mas vivencia, atua nelas e propaga as melhorias que também ocorreram na vida de quem mora na periferia, como escreve em “Primavera Periférica”:

A periferia de São Paulo vive hoje a mesma efervescência cultural que a classe média viveu nos anos 1960 e 1970, considerando o auge da criatividade e do engajamento artístico.

Outra coisa são os problemas sociais, ainda bem presentes. E de algum pedaço mais alto da cidade, ele tem vista muito privilegiada sobre as causas e consequências de cada decisão e omissão da sociedade:

Muitas vezes,
quem tem a infância roubada
acaba furtando o futuro de alguém.

Aqui, nesse poema sem título da página 33, ele tem um posicionamento semelhante ao de Manuel Bandeira no poema “O bicho” (ver texto sobre os 130 anos de Manuel Bandeira aqui mesmo no blog). Sérgio, nesse texto específico, não faz uma denúncia, não aponta o dedo a nenhum culpado, mas sente e conta o que sente sobre o que enxerga com clareza.

Seus versos são livres. Em todos os sentidos. Pode ocorrer a métrica, mas ele não se prende a ela, é sempre em benefício do ritmo. O livro é de poesia, mas tampouco Sérgio se prende ao verso. Há precedentes dessa mistura. Em Para viver um grande amor, Vinícius de Moraes mescla poesia e crônica. Em Flores de alvenaria, Vaz parte do poema, mas se expressa também em aforismos e prosa. Outro exemplo, mais recente, de artista que adota essa escolha é Rodrigo Naves, em A calma dos dias.

Na apresentação do livro, o cantor e compositor Chico César explica: “Pode ser poesia ou prosa. O homem e o poeta são o mesmo, um  só“.

O que Sérgio Vaz escreve, como escreve, só ele pode fazer. Em si, esse é outro importante convite que faz aos seus leitores, que é gente de todos os lugares do Brasil, de todas as condições de vida: escreva você também. Como se dá esse convite? Um elemento marcante é a linguagem descomplicada. É uma escolha que vaza. Sérgio é leitor de poesia sofisticada, fã de Pablo Neruda (chileno, Nobel de Literatura), por exemplo. Ele pega a tradição, absorve, mescla com sua experiência, sua visão de mundo e o que sai é claro e ao mesmo tempo impregnado de complexidade. A fluidez da construção de seu texto remete à leitura em voz alta, à instituição pública que se tornou o sarau pela ação do mesmo Sérgio Vaz, entre outros propagadores da poesia. E a descomplicação, uma escolha para ser preciosamente acessível.  Para ele, pouco mais importa do que realmente chegar ao coração de quem o escuta e lê, ainda que cada um tenha seu próprio mundo:

Eram os poetas astronautas?
É certo que não sou daqui
não sou disso nem daquilo
nem desse planeta.
Não falo essa língua
que vagueia por aí
cortando a garganta
dos seres dessa galáxia.
Sem nada pra dizer
deixo um rastro de estrelas
pra quem quiser me entender.
Viajante do tempo
estou no passado, presente e futuro
sem sair do lugar.
Marciano em junho,
guardo meu sol
na sombra da noite.
Não me levem aos seus deuses,
que minha vida breve
tem sede do infinito.
De onde venho
as palavras
têm raízes no coração
e asas no espaço sideral.
Escrevia enquanto Via Láctea
e no céu da minha boca
um Poema habita o Sistema Solar.
Anos-luz de mim mesmo
estacionei meu ônibus espacial
nesse buraco negro chamado Terra.
Sou astronauta da rua
passando um pano
na poeira cósmica desse universo.