“O abominável homem novo”

É claro que conhecer mais profundamente o pensamento de Darcy Ribeiro exige a leitura de O povo brasileiro, no mínimo, e outros clássicos das Ciências Sociais do Brasil. Mas essa aproximação pode se dar de diversas maneiras, aos poucos e deliciosamente. Duas sugestões para começar? Noções de coisas, com ilustrações de Mauricio Negro, traz textos divertidos sobre os mais variados assuntos, nos quais Darcy questiona conhecimentos tidos como consagrados, científicos, verdades que se mostram mais frágeis quando deglutidas pelo cérebro voraz dele (e o nosso, que pensa junto enquanto lê). Outra dica é o livro Ensaios insólitos, com treze abordagens também variadas, publicadas em tempos e veículos diferentes. Aqui vai um exemplo de como Darcy Ribeiro elaborava seus questionamentos e o quanto é convidativo pensar junto com ele. Este trecho inicial de “O abominável homem novo” foi uma carta a um jornalista italiano.

“Você quer saber se suas indagações sobre o destino humano seriam significativas para qualquer homem. Inclusive para um membro hipotético de uma tribo da Amazônia. Não. Provavelmente não. Aquele amazonense tribal está enjaulado em sua cultura e só vê, e só entende o que ela lhe permite ver e entender. Nos também estamos enjaulados em nossas culturas e só percebemos aquilo que elas elaboram previamente para nós como inteligível. Seria necessário um denominador comum para que pudéssemos dialogar com ele. Mas seria indispensável, também, toda uma racionalidade comum.

O denominador comum existe. É vastíssimo. Começa com nossa herança físico-biológica de seres vivos, zoológicos, vivíparos (não botamos ovos), mamíferos primatas, onívoros (pastamos e trinchamos), bípedes erectus (a dor ciática é nostalgia da posição quadrúpede); quase desprovidos de pelos (exceto vocês europeus, que são bastante peludos), capazes de atividade sexual continuada (…) e não sujeitos a cio. Isso para começar, porque há muita coisa mais.

Além deste substrato físico, temos em comum com aquele indígena hipotético muito mais do que pensamos. Ele é um homem integral, ainda que não terminal. Pensa e fala com uma linguagem tão boa, ou tão má como a nossa. Sente e reage na maioria das situações como nós, tendo por base um psiquismo essencialmente idêntico. É capaz de amor e até de amores depravados, de ódios furiosos, da ternura mais dengosa, de ciúmes atrozes, de medos aterradores, de riso alegre, de vil tristeza, de pudor, de orgulho e de mil sentimentos mais em gamas sensibilíssimas.

Mas sua racionalidade não é a nossa. Eles jamais entenderiam nossas motivações de lucro e cobiça ou nossa propensão à violência gratuita. Nossa racionalidade será racional? Ou eles são irracionais? Nada disso. O que ocorre é que nossas mentalidades refletem experiências muito diferentes. E também inexperiências díspares. O certo é que, em sua inocência, eles guardam um frescor intelectual, uma curiosidade viva que nós perdemos há muito nos desvãos da evolução. Isso é o que faz um índio qualquer tão capaz de curiosidade como um intelectual romano.”

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