Várias vidas, uma outra

Marco Severo *

Sempre que me perguntam se acredito em outras vidas, me vem à mente um álbum sendo folheado velozmente, como aqueles cadernos onde o artista faz um mesmo desenho em posições diferentes e que, passando com o dedo em rápida sucessão, dão a impressão de que o personagem está se movimentando. No meu caderno, entretanto, o personagem sou eu. Eu e os aeroportos, eu e as malas, os táxis, colocando um tênis confortável no pé, longas caminhadas.

É bem aí que o caderno acaba, dando espaço à memória dos lugares e uma certeza atávica: viajar é justamente viver outras vidas. É a capacidade de desconectar-se do eu com o qual você está acostumado a viver todos os dias e imergir num outro, que você desconhece, numa tal ignorância que torna sua descoberta um ato quase libidinoso: o contato consigo mesmo pode ser adrenérgico.

Foi com esse sentimento que atravessei os portões do Aeroporto Internacional da Cidade do México, rumo ao hotel. Por pura incapacidade de ver para além do óbvio (olhando retroativamente, é fácil perceber), visitar o México nunca foi uma das minhas opções de viagem. Mas, como ganhei passagem de ida e volta justamente para lá, agarrei a possibilidade como se aquele sempre tivesse sido um sonho antigo.

É dentro do sonho que o mundo se torna grande. Habitamos o onírico para conceber com clareza e sanidade a novidade do universo real, a cidade onde aterrissamos, ainda que tenhamos chegado a ela de navio, de moto ou a pé: a chegada é sempre um pouso, tanto na ideia de estar quieto em um lugar, como num outro sentido possível, o da efemeridade. Em breve, voaremos para algum outro lugar, perfazendo, assim, ciclos que podem ou não ter um fim aparente. Entre o partir e o chegar, somos outros, como o tempo que separa quem enviou a carta de quem a recebe.

O México é esse país onde se vive constantemente dentro de uma obra de realismo mágico. Era só botar o pé fora do hotel, e parecia que eu adentrava num universo diferente da vez anterior em que eu fizera o mesmo movimento. E tal como num sonho, caminhar pelas ruas repletas de gente da Cidade do México é ter a sensação de estar solto dentro de labirintos, onde o que mais se deseja é se perder de si, do mundo, daquele outro que ficou no lugar de onde o avião partiu.

Não há dia igual no México. A sensação é que há tal exuberância de lugares e corpos, que nem o dia que se vive lembra aquele que passou. Num minuto, caminha-se por ruas apinhadas de locais e turistas e seus prédios históricos. No outro, você se descobre num lugar repleto de verde, de arte, de feiras de rua e seus muitos cheiros. Como não acreditar em outras vidas, quando os sentidos, aguçados pela curiosidade do que vê e sente, nos mostra que, embora estejamos limitados pelo corpo físico, nossa alma transcende, em busca das plurais possibilidades de descoberta?

Foi assim que descobri museus, livrarias, feiras que vendem de tudo, ruas largas repletas de árvores e bicicletas e, afastando-se mais um pouco, pirâmides, vendedores de bugigangas, toda a história de uma civilização entregue a quem quiser descobri-la.

Fui outro no México. E quando voltei, me encontrei diferente, consciente de que retirei as escamas e vi surgir em mim uma outra pele. Era eu, mas um eu renascido, em pelo, pronto para abraçar quantas vidas eu quisesse.

Permanece em mim o sentimento de que só se vive plenamente quando nos desnudamos para nós mesmos.

* Marco Severo é de Fortaleza, Ceará. Professor de inglês, tradutor, gosta mesmo é de escrever em português claro e de ler em todas as formas da língua. Autor dos livros Os escritores que eu matei (Editora Substância, 2015) e Todo naufrágio é também um lugar de chegada (Editora Moinhos, 2016).