Poetas nos tribunais

por Adriane Garcia*

Na sala do auditório, cadeiras acolchoadas, forradas de vermelho, aguardamos a grande poeta premiada. Pensamos que talvez seja um evento monótono, tedioso, visto que oferecido pelo governo. O auditório ainda não está repleto e a poeta ainda não chegou. Todos aguardam a senhora de cabelos brancos, capaz de uma poesia que envolve Deus, sexo e morte.

Quase lotada agora, a sala, finalmente ela chega, acompanhada de filho, uma amiga, gente dos seus afetos. Leitores fiéis (que, sim, eles existem) aguardam ansiosos o momento exato (antes ou depois?) em que ela poderá autografar livros que figuram nas estantes particulares, alguns há décadas, aguardando oportunidade. A poeta é conduzida pela organização do prêmio com honraria e préstimo, essa maneira reverente e quase instintiva que temos de tratar aqueles que, na sua humanidade, venceram o ordinário.

Sentada, olhando para o palco, à espera, não sente sobre si olhos curiosos, olhos que esperam que saia dela (imagine!), talvez de sua imagem material, seu corpo, uma aura, um assombro desses que ela consegue com a palavra escrita.

O cerimonial tem início, entre apresentações curriculares e anúncios de novas bibliotecas que o governo criará, a surpresa: o palco é tomado (sim, digo tomado porque não sobrou mais espaço algum para qualquer coisa que não fossem eles) por 32 adolescentes e jovens que, cenicamente, ofertavam as palavras da poeta, cantantes, presentes, absortos na emoção daquilo que diziam.

Na plateia, a palavra circulava, como num oito infinito, e tocava a noite e a eletricidade guardada em cada um. A poeta chorava, discretamente. O público comungava, sem dizer, o sentimento do privilégio de estar ali. Ligados, todos, sem se saberem, mutuamente, os nomes, não importava, a palavra alcançava o seu princípio religioso – religare.

Término da apresentação, ainda o torpor, alguns segundos, o aplauso de pé. A poeta, chamada ao palco, sobe, de sua velhice e sapiência: sabe que o prêmio já foi recebido. Chamada a dizer, agradece, extremamente comovida e diz que, em épocas de trevas, é preciso mais humanizar-nos, através daquilo que nos torna propriamente humanos: o símbolo. E clama pelo símbolo em nossas vidas, e nos convida ao simbólico: “Quem souber pintar, pinte; quem souber cantar, cante; quem souber fazer cinema, faça; quem souber encenar, como esses meninos, encene; quem souber escrever, escreva; faça um sarau, um encontro, faça qualquer coisa, reze”. Convida-nos ao exercício do simbólico, ela, a dona de casa católica cuja história pessoal desnudou em sua obra; ela, a quem, porque são outros tempos, exigem ser outra.

Passado o evento, no dia seguinte, a poeta ganha destaque nos jornais. Um jornalista esperto faz uma manchete (ele sabe o que vai manipular de alvoroço), uma redução proposital, dizendo que ela conclamou a rezar para acabar com a crise no país, aproveitando-se de polêmica anterior (afinal, rezas estão démodé desde o Manifesto comunista).

Os que lá estiveram respiram a beleza do que presenciaram, tendo antes respirado a beleza da obra lida. A manchete do jornal suscita os julgamentos posteriores.

A poeta provavelmente está em casa, no seu exercício de ser quem é.

A obra permanece.

* Adriane Garcia é historiadora, arte-educadora, atriz e sobretudo escritora, em conto, crônica, teatro e poesia. Autora dos livros O nome do mundo e Só, com peixes, entre outras obras.