Máscaras de porcelana

* Adriane Garcia

Um artista bateu à nossa porta. Aqui mesmo, numa repartição pública, coisa mais estranha, a princípio, pensamos tratar-se de um cidadão querendo saber de um processo. Mas era um artista, deixou isso claro e acrescentou: “Quero falar com o diretor da secretaria”. Explicou rápido, como quem vencia o tempo, que havia sido convidado para uma exposição internacional, a convite de um grande pintor e que, com passaporte e viagem para dali dois dias, faltavam-lhe ainda 12 mil reais. Falava arfante, mas com propriedade, o sotaque paranaense, sua chance única, que só possuía as telas e que, a esta altura, vendia-as ao preço de mal recuperar o custo.

Entrou, permitido, exibiu as telas, repetiu a história para os funcionários que não a sabiam; de sua voz saía a palavra Veneza. A repartição estranhando um tanto de cor, ali, deslocada de espaço e horário.

Um ou outro pagamos um nada, os cem reais que ele pedia, uma contribuição assim, de quem em cima da hora não precisava de uma pintura na parede, de quem não possuía ao menos espaço, mas compreendia bem, em algum lugar de memória afetiva, talvez forjada num filme, num livro, um sonho.

Saiu o artista, duas telas a menos. Sabe-se lá que porta lhe abriu, que porta lhe fechou, que ouvido se estendeu para a luta da urgência. O dia, sem fechar, encerrou o expediente. Um incômodo de quase choro dizia que as crianças sempre comovem, e constatava: vez em quando, passa alguém vivo por aqui.

* Adriane Garcia é historiadora, arte-educadora, atriz e sobretudo escritora, em conto, crônica, teatro e poesia. Autora dos livros O nome do mundo e Só, com peixes, entre outras obras.