Luz de lanterna, sopro de vento – Marina Colasanti

E tendo o marido partido para a guerra, na primeira noite da sua ausência a mulher acendeu uma lanterna e pendurou-a do lado de fora da casa. Para trazê-lo de volta murmurou. E foi dormir.

Mas ao abrir a porta na manhã seguinte, deparou-se com a lanterna apagada. “Foi o vento da madrugada”, pensou olhando para o alto como se pudesse vê-lo soprar.

À noite, antes de deitar, novamente acendeu a lanterna que, à distância, haveria de indicar ao seu homem o caminho de casa.

Ventou de madrugada. Mas era tão tarde e estava tão cansada que nada ouviu, nem o farfalhar das árvores, nem o gemido das frestas, nem o ranger da argola da lanterna. E de manhã surpreendeu-se ao encontrar a luz apagada.

Naquela noite, antes de acender a lanterna, demorou-se estudando o céu límpido, as claras estrelas – Na certa não ventará – disse em voz alta, quase dando uma ordem. E encostou a chama do fósforo no pavio.

Se ventou ou não ela não saberia dizer. Mas antes que o dia raiasse já não havia nenhuma luz, a casa desaparecia nas trevas.

Assim foi durante muitos e muitos dias, a mulher sem nunca desistir acendendo a lanterna que o vento, com igual constância apagava.

Talvez meses tivessem passado quando num entardecer, ao acender a lanterna viu ao longe, recortada contra a luz que lanhava em sangue o horizonte, a escura silhueta de homem a cavalo. Um homem a cavalo que galopava na sua direção.

Aos poucos, apertando os olhos para ver melhor, distinguiu a lança erguida ao lado da sela, os duros contornos da couraça. Era um soldado que vinha. Seu coração hesitou entre o medo e a esperança. O fôlego se reteve por instantes entre os lábios abertos. E podia ouvir os cascos batendo sobre a terra, quando começou a sorrir. Era seu marido que vinha.

Apeou o marido. Mas só com um braço rodeou-lhe os ombros. A outra mão pousou na empunhadura da espada. Nem fez menção de encaminhar-se para a casa.

Que não se iludisse. A guerra não havia acabado. Sequer havia acabado a batalha que deixara pela manhã. Coberto de poeira e sangue, ainda assim não havia vindo para ficar. – Vim porque a luz que você acende à noite não me deixa dormir – disse-lhe quase ríspido. – Brilha por trás das minhas pálpebras fechadas, como se me chamasse. Só de madrugada, depois que o vento sopra, posso adormecer.

A mulher nada disse. Nada pediu. Encostou a mão no peito do marido, mas seu coração parecia distante, protegido pelo couro da couraça.

Deixe-me fazer o que tem que ser feito, mulher – disse ele sem beijá-la. De um sopro apagou a lanterna. Montou a cavalo, partiu. Adensavam-se as sombras, e ela não pôde sequer vê-lo afastar-se recortado contra o céu.

A partir daquela noite, a mulher não acendeu mais nenhuma luz. Nem mesmo a vela dentro de casa, não fosse a chama acender-se por trás das pálpebras do marido.

No escuro, as noites se consumiam rápidas. E com elas carregavam os dias, que a mulher nem contava. Sem saber ao certo quanto tempo havia passado, ela sabia porém que era tanto.

E passado outro tanto, uma tarde em que à soleira da porta despedia-se da última luz no horizonte, viu-se desenhar-se lá longe a silhueta de um homem. Um homem a pé que caminhava na sua direção.

Protegeu os olhos com a mão para ver melhor e aos poucos, porque o homem avançava devagar, começou a distinguir a cabeça baixa, o contorno dos ombros cansados. Contorno doce, sem couraça. Hesitou seu coração, retendo o sorriso nos lábios – tantos homens haviam passado sem que nenhum fosse o que ela esperava. Ainda não podia ver-lhe o rosto, oculto entre barba e chapéu, quando deu o primeiro passo e correu ao seu encontro, liberando o coração. Era seu marido que voltava da guerra.

Não precisou perguntar-lhe se havia vindo para ficar. Caminharam até a casa. Já iam entrar, quando ele se deteve. Sem pressa, voltou-se, e embora a noite ainda não tivesse chegado, acendeu a lanterna. Só então entrou com a mulher. E fechou a porta.

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O conto faz parte do livro Mais de 100 histórias maravilhosas (Global Editora). Veja a própria Marina Colasanti falando de sua obra, aprofundando a discussão sobre o que são contos de fadas e histórias maravilhosas e também tratando das ilustrações de seus livros, ao revelar que as artes plásticas são sua formação inicial, derramada depois em palavras também.

 

 

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