Leitor de riachos

* Marco Severo

Em 1927, E. M. Forster publicou um livro que viria a se tornar um clássico, Aspectos do romance, que é a reunião de uma série de palestras que ele deu na universidade de Cambridge. Nele, Forster faz a análise dessa forma literária, discutindo o aspecto dos personagens, da trama, do ritmo, e tece comparações entre romancistas respeitados. É nessa obra que ele afirma que o romance é irrigado por “centenas de rios-histórias”. Sendo o romance um gênero que abraça múltiplas camadas e polifonias, podendo, com frequência, caminhar rumo a brejos, pântanos, abismos e desertos, aquilo a que uns tendem a chamar de “encheção de linguiça”; o campo se torna vasto, e as possibilidades no ir e vir da trama, inúmeras.

Se o romance é um rio, como afirma Forster, o conto, por sua vez, conforme afirma o escritor João Anzanello Carrascoza, é um riacho. Enquanto o rio pode ser caudaloso, o riacho, via de regra, é sublime e sutil.

Longe de parecer reducionista, o conto também pode ter uma profundidade abissal, tal qual o romance – pode ser uma leitura das mais prazerosas. Mas, sobretudo, pode ser um gênero para se descobrir e aprender a amar, daquela maneira que somente a literatura é capaz.

Conheço gente, entretanto, que diz não gostar de contos. Os argumentos são muitos: “são histórias curtas, quando você está se acostumando com os personagens, acaba”. Ou, “são romances resumidos”, “mal dá tempo de desenvolver algo com mais substância”, “eu gosto de histórias mais longas”. Com exceção do último, que é algo possivelmente irrefutável, por se tratar de gosto pessoal, todas as demais não são necessariamente verdadeiras.

Aliás, posso começar dizendo o que o conto não é: o conto não é um poema sem versos; não é um romance espremido em dez, vinte páginas; não é o resumo de um roteiro. O conto não é uma forma híbrida de dois ou mais gêneros. Um conto pode até ser poético, semelhante a um romance em termos de alcance, e fílmico em estilo ou ritmo. Mas o conto é uma criatura como nenhuma outra. Muito mais do que isso: um grande contista se apossa do gênero e o torna seu, faz algo novo e cria uma nova voz, uma voz inconfundível que não se cruza com a de mais nenhum outro escritor.

E a maioria dos grandes escritores de ficção beberam (e bebem) tanto das águas do rio como das do riacho, encontrando-se nas duas formas (e também em outras).

Houve um tempo em que editoras estrangeiras pediam a seus autores que escrevessem livros gigantescos, de seiscentas páginas ou mais, porque pesquisas internas diziam que os leitores gostavam de passar muito tempo naquela trama e com os personagens, que chamavam de “meus”. Acontece que assim como já se cantou inúmeras vezes a morte do romance, desde o final do século XIX e ele permanece vivo, vendendo bem e criando leitores, os desejos dos leitores mudam, encasulam-se e renascem de diversas formas (inclusive retomando gostos antigos – quem tem um pouquinho mais de tempo no mundo já viu apetrechos usados por pais ou avós ganhando novamente os guarda-roupas de filhos e netos e sabe ainda melhor do que estou falando). Assim, o romance ganhou contornos mesclados. Aquele romance caudaloso e cronológico, repleto de detalhes, por vezes os mais bocejantes possíveis, ainda existe hoje, mas está cheio de aspectos dissonantes e destoantes daquela velha forma, não diria ultrapassada, mas seguramente clássica. E é por hoje podermos brincar mais com o gênero, algo que Ignácio de Loyola Brandão fez com Zero há tantas décadas e que, naquela época, chamavam de inovação, que os romances atuais têm diversos tons e estilos, perpassando o jornalismo, a colagem, a biografia (pense em Virgina Woolf, que escrevia romances aos quais chamava de biografias, outra que era à frente do seu tempo). O pouco usual, a “coisa de doido”, hoje é comum. E embora romances volumosos continuem a ser publicados (O pintassilgo, de Donna Tartt, publicado em 2013, é um grande exemplo disso, sem trocadilhos), hoje a tendência é publicar romances menos longos, romances de menos de quatrocentas páginas.

Economia de papel não é, inclusive porque hoje temos os livros digitais, só pode mesmo ser sinal dos tempos.

É bem nesse momento que o romance se aproxima do conto, e que este último começa a ganhar espaço, inclusive para aqueles anteriormente mais resistentes ao gênero. Claro que Alice Munro ter recebido o prêmio Nobel de literatura em 2013 e ter escrito apenas contos durante toda a sua carreira ajudou bastante. Mas o reerguimento do conto começou alguns anos antes, ali na curva entre o século XX e XXI, quando os e-books começaram a entrar em cena, e essa ideia de leituras mais breves (e reitero: nem por isso menos densas) começou a tomar conta do mercado editorial.

Como nem tudo nesse mundo entra pela porta que gostaria, o conto começou a ganhar contornos de maior enlevo e importância neste momento. Não que ele tenha deixado de ser importante em momento algum: desde Tchekhov, passando por Borges, chegando a Rubem Fonseca, Lygia Fagundes Telles e tantos outros, até chegarmos na Nobel Alice Munro, o conto sempre esteve aí e sempre estará. Aliás, sete séculos antes de Cristo, já existiam as fábulas, Esopo já estava no mundo oralizando suas histórias, e essa foi, indubitavelmente, a primeira forma de conto do mundo. Ou seja, o gênero sempre teve leitores.

Eu mesmo me tornei leitor de contos quando eles ainda tinham, para mim, o nome de “fábulas”. Esopo, Hans Christian Andersen e La Fontaine foram a porta de entrada. Com histórias curtas e linguagem facilitada para quem ainda tinha dente de leite, eu me divertia horas a fio lendo e, logo em seguida, ouvindo em LPs, as histórias que até hoje, passados tantos séculos desde seus primeiros registros, continuam a povoar o imaginário das mais diversas civilizações pelo mundo.

A descoberta veio, ainda bem no meu caso, através de escritores brasileiros. Li contos de Fernando Sabino, de Carlos Drummond, Murilo Rubião, Luiz Vilela… Todos me levando a outras coisas, outros autores, novos lugares. Descobri aí um nicho que nunca mais largaria, a história econômica não em profundidade nem em qualidade, mas em espaço. Como não se deleitar durante aqueles minutos que levei para ler O alienista e carregá-lo comigo ainda hoje como uma das melhores leituras desta vida? Tempo, espaço, personagens – tudo limitado, e por isso mesmo, mais denso, eu me sentia jogado para dentro de uma atmosfera grandiosa, que falava a mim com eloquência e também de uma maneira atroz, dilacerante. E era ali que eu queria estar.

Adentrar nas águas do riacho, banhar-se nele: eis aí uma maneira de fazer da literatura a melhor amante.

* Marco Severo é de Fortaleza, Ceará. Professor de inglês, tradutor, gosta mesmo é de escrever em português claro e de ler em todas as formas da língua. Autor dos livros Os escritores que eu matei (Editora Substância, 2015) e Todo naufrágio é também um lugar de chegada (Editora Moinhos, 2016).