Eu faço que não com a cabeça

Marina Colasanti

O homem se aproxima no ponto de ônibus. Tem um papel na mão, lista, receita, não sei. Fala coisas que não entendo. Evito olhar o papel, evito olhar para ele, querendo afastá-lo com meu desinteresse. Quando percebo que quer dinheiro faço que não com a cabeça. E continuo fazendo não até que ele se afasta.

Moça, chama-me o chão. Não é o chão, é uma pessoa acocorada junto à parede. Estou com pressa, respondo sem falar.

Não quero que limpem meu vidro. Não preciso de canetas esferográficas. Não vou comprar loteria hoje, o bilhete caído não é um apelo da sorte, é uma malha a mais na vasta rede.

O umbigo ainda pendente, o bebê mole no calor, largado no colo da mãe, ao nível dos meus pés. Se eu comprar uma lata de leite em pó ela não terá água filtrada, não terá mamadeira, não terá nada para usar o leite. Então não compro.

Traço a cidade na reta dos meus passos, na fuga a tantas mãos. Mas é difícil enxergar, porque me falta um olho. No Pátio da Cidade só quero descansar de tudo o que me falta.

Então estendo a mão para pedir também. E nela cuspo. Tampo o olho que enxerga e vejo com o vazado. No Pátio sitiado as moscas fazem ninho, as varejeiras põem seus ovos, o corpo excrementa.

Vou eu no corredor das ruas.

Boa noite, sorrio para o porteiro da boate que me abre a porta.

Obrigada, sorrio para o chofer do táxi que me leva.

Até amanhã, despeço-me do maître que me serviu o jantar.

Eu tão gentil.

– Moça?… a senhora podia…

– Não posso.

– … dizer onde fica a “Praça XV”?

As mulheres, todos sabem, alugam criancinhas para pedir esmolas na rua. Então não dou esmola para as mulheres, que espancarão os meninos porque nada ganharam.

E as criancinhas, todos dizem, são pivetes em potencial. Então não dou esmolas, para que prossigam.

O cego vende lixas de unha que não compro porque corto com tesouras. E lâminas de barbear que não compro porque não tenho barba. E agulhas de costura, que não compro porque não são da marca que me agrada. Ou não vende nada, e não dou dinheiro, porque todo dia passo por ele e se eu der dinheiro todo dia não há dinheiro que chegue.

Alô? Aqui é do Orfanato, será que a senhora poderia…

Alô? Aqui é do Asilo, quem sabe, a senhora poderia…

Não posso. Não estou. Fecha a porta. Não atende. Madame está viajando. Aqui não mora ninguém com esse nome. Não viu o aviso na porta? Cuidado com o cão. Fale com o porteiro. Deixe recado. Passe outro dia.

O homem vem a mim no ponto de ônibus. Desvio o olhar fingindo que não estou com medo. Ele me olha e pede, sabendo que não vou dar, porque estou com cara de quem não vai dar. E eu faço que não com a cabeça. E eu o odeio por me levar a fazer não. E não. Faço não. Não. Com a cabeça.

21 de janeiro de 1973

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