Embeleze

* Adriane Garcia

Vai repetir a sétima série. Ou não. Todo mundo passa. Ano passado o Julinho passou faltando quase o ano inteiro. E foi mal nas provas. É difícil reprovar um aluno na escola pública. O tio explicou que é por causa dos números, que a escola tem que passar os alunos para mostrar que é boa. Tem que ser fera para repetir.

O cheiro do produto é horroroso, parece o cheiro da amônia que passa nos pelos das pernas e dos braços, ao sol, para clareá-los. Ano que vem vai colocar aparelho nos dentes tortos. A dentista disse que ela tem a arcada cruzada, a mãe está juntando umas economias. Aproveita e faz um clareamento. Quer esticar o cabelo. Eles ficam lisos, balançando.

A cabeleireira não avisou que o tratamento está quebrando demais os fios. Carla já sabe que o cabelo está raleando, progressivamente virando um nada nas pontas, mas crespo é que não fica. Se ao menos as espinhas no rosto parassem. Não param. E o pior é que, nervosa, ela mexe e faz ferida. Sem protetor solar, vai ficando toda manchada. Nas revistas, as mulheres têm sempre cabelos grandes e lisos e, na pele, nunca espinhas. Como será que elas fazem? Descobriu que é bom passar ovo cru no rosto. Tem passado. Mas a mãe ralha porque o ovo é pouco e é para a comida. Se fosse rica, comprava protetor solar e uma sandália maravilhosa que viu na vitrine do shopping, parecendo de passista de escola de samba. Outro dia aquele ator lindo, na entrevista, disse que a parte da mulher que ele mais gosta são os pés. E acrescentou: “Numa sandália bem sensual”.

O melhor momento é este: quando Dona Sandra manda deitar a cabeça, e a água, morninha, escorre nos cabelos. Depois, o xampu, dois pingos grossos, gelados, e as mãos de Dona Sandra fazendo movimentos circulares e muita espuma. Ah, não se lembrava de alguém que lhe fizesse um carinho assim. Mas acabava. Energicamente, as mãos da cabeleireira os secavam com a toalha áspera. Ela já estava acostumada.

A cadeira do salão é um lugar único. Deixa a pessoa alta, de frente para o espelho grande, que promete uma transformação quase imediata. Ainda doía a surra que levara da mãe, no início da semana. Se ficasse atrás do muro com alguns meninos do colégio, ganhava um dinheiro, que juntava. E gostava de comprar batons, sombras, cremes e manter os cabelos lisos. A prima contou para a tia, que contou para a mãe. E apanhou muito, de mão e chinelada. Agora a mãe chora, faz uma faxina a mais e dá o dinheiro da progressiva.

Estavam divididos em três. Assim molhados, mais escuros. Talvez clareie um pouco. Se tivesse a pele mais clara, talvez loira… talvez fique bem um tom dourado, umas luzes. Os jogadores de futebol sempre escolhem as loiras. Dona Sandra acha que pode ficar bom e tem uma tinta excelente. Mas só pode aplicar daqui a alguns dias porque estraga o cabelo. Com os prendedores, a cabeça fica cheia de caminhos, parecendo estradinhas de terra, dessas que levam a fazendinhas, sítios. Um dia, há muito tempo, foi num sítio, quando o pai ainda era casado com a mãe. Foi um dia feliz. Depois ele arrumou outra. Mais bonita. A mãe é muito magra, trabalha demais, tem uma aparência sofrida que lhe acrescenta mais dez anos, no mínimo. As mechas vão se besuntando do creme malcheiroso. O couro cabeludo arde um pouco, mas ela não se importa – é por uma ótima causa. O couro cabeludo queima. Carla tem vontade de coçar a cabeça, mas sabe que não pode estragar tudo e segura a vontade. Dói, queima, coça, pinica feito uma porção de abelhas juntas, ferroando. Ai! Como esquenta, como esquenta! Mas daqui a pouco passa. Dona Sandra pergunta se está tudo bem, se pode continuar. Carla olha firme para o espelho, as bochechas febris: “Está tudo ótimo. Pode continuar.”

Uma vertigem atravessa o lugar. Parece que a manicure, a cliente, a cabeleireira, os secadores dependurados nos braços mecânicos, os objetos todos rodam e vão cair. Carla se segura. Sabe que a vida é sacrifício. As mulheres da TV são lindas o tempo todo porque investem nesses tratamentos, porque não existe mulher feia, existe é mulher malcuidada. E Carla sorri, por fora.

* Adriane Garcia é historiadora, arte-educadora, atriz e sobretudo escritora, em conto, crônica, teatro e poesia. Autora dos livros O nome do mundo e Só, com peixes, entre outras obras.