Como aprendi a contar meus anos

Marco Severo *

Não penso num ano bom pelos lugares que visitei, os amigos que fiz, as comidas novas que experimentei, as belezas da vida que passei a ver. Essas são contingências do ato de viver em si mesmo, e um espírito aberto e mais ou menos sensível aproxima todas essas possibilidades.

Da mesma forma, não penso num ano ruim pelos enterros aos quais fui, as brigas de Facebook que testemunhei, as quedas de avião, perdas de emprego ou a morte de artistas queridos e de familiares. Isso tudo também faz parte do fato de estarmos vivos e deve ser enfrentado com sobriedade, respeito pelo seu próprio tempo de elaboração do luto e, preferencialmente, ao lado de alguém que possa ajudá-lo a se pôr de pé.

Hoje, meço os meus anos de vida pelos livros que leio.

Olho para as listas de livros que vou lendo a cada ano com a complacência de um pai que observa o filho pequeno dormir. O zelo, a admiração, o respeito pela identidade una, que narcisicamente também é você e ao mesmo tempo é um outro, dissociado; todos os sentimentos se enfeixam de uma tal maneira que tornam a descrição mais acurada impossível, tal o embotamento das ideias, das sensações.

Observando hoje a lista de alguns anos atrás, por exemplo, me pergunto como pude perder tempo com algumas bobagens que hoje seriam deixadas de lado, enquanto outras, bem sei, foram capazes de edificar minhas torres, salvaguardar-me de precipícios e, por fim, me deram a possibilidade de tornar-me quase imortal.

E eu digo quase porque, claramente, a literatura é capaz de tudo, mas ela também encontra as resistências de um mundo por demais humano. Afinal, claro que você perde pontos se sua alimentação for desregrada e exagerada: não há bônus literário suficiente para suprir o preço que pagamos fisicamente por aquilo a que não conseguimos resistir.

Mas quem aí almeja ser imortal? E para quê?

Volto meu olhar para aquele amontoado de nomes de escritores e títulos, e percebo que ganhei dias de vida ao ler muitos daqueles livros. Aprendi que determinados livros aumentam nosso tempo de passagem pela vida, são eles a verdadeira ambrosia do mundo.

Basta ir a uma livraria num sábado à tarde. Veja aquela enormidade de crianças, cujos pais e mães estão lá, deitados, lendo livros para elas. Ou que estão correndo com livros nas mãos, ou ainda simplesmente deixando o filho correr solto, irrompendo na tênue linha que cobre a descoberta do ainda-por-descobrir. As aventuras literárias do porvir, num universo que só tem a engrandecer. É quase onírico.

Essas crianças ainda não sabem, mas um dia entenderão por que são elas as que chegarão aos 120 anos: começaram a ser regadas cedo. E quanto mais cedo se lê bons livros, mais dias de vida se ganha.

A geração anterior à minha começou relativamente tarde e, por isso, poucos são os que passam de 80.

Ainda assim, como não se comprazer no mais etéreo gozo ao descobrir-se diante de uma obra que rasga as suas verdades, que te arrebata, comove e faz de ti quem tu não eras até ali? Pois é essa obra que te tira de ti mesmo, que chacoalha suas colunas de sustentação, que te deu mais tempo neste mundo.

Repare em si próprio: você termina aquele romance estrondoso, que passa dias ecoando na sua vida. Sim, aquele mesmo romance sobre o qual você se pegava pensando nos momentos mais sem relação possível do seu dia, como quando você sentou na cadeira e pegou no controle remoto, quando trancou o carro e se dirigiu ao elevador para finalmente chegar em casa, depois de longas horas de trabalho, ou naqueles minutos finais antes do seu cérebro se desligar completamente ao final do dia. Em alguns dias – poucos, bem verdade – você sequer pôde lê-lo, de tão cansado ou atarefado que estava, mas dava aquela espiadinha, lia um ou dois parágrafos, não só por não poder dedicar-se mais a ele, mas em respeito ao próprio livro, ao qual, de tão bom, você não queria doar horas dispersas.

Pois foi este livro, que vinha sendo quase um nirvana na sua rotina, um oásis no meio da aridez diária, uma pausa na loucura caleidoscópica dos dias, depois de várias obras apenas razoáveis engatilhadas sucessivamente, que te faz conclui-lo e pensar: a melhor obra que li até agora, este ano.

Engraçado como tudo parece mudar à nossa volta. Subitamente, não perdemos mais a paciência no trânsito, respondemos com paciência de Jó à pergunta mais idiota, vinda de quem quer que seja, os horários apertados continuam os mesmos, mas se você vê que não vai dar para chegar na hora, paciência; a culpa não é sua, que saiu no horário, mas do acidente inesperado que trava o trânsito – e você apenas aumenta o volume do som do carro e canta a plenos pulmões, e de vidro abaixado, afinal, quem é mesmo que tem a vergonha de ser feliz aqui?

Donde podemos concluir: a alegria, sabemos, faz tudo no corpo funcionar melhor, precisamos nem perguntar ao médico. Em resumo: ganhamos tempo de vida.

Há alguns anos, li Kafka à beira-mar, de Haruki Murakami. Foi meu primeiro livro dele. Terminada a leitura, eu soube, imediatamente, que tinha acrescentado mais alguns meses de vida ao que quer que eu fosse viver até então. Seguiram-se a este livro, A elegância do ouriço, de Muriel Barbery, e Marilyn, últimas sessões, de Michel Schneider. Aquele foi um ano bom. E eu ainda fui presenteado com mais vida, para, com um pouco de sorte, descobrir mais bons livros, que me levarão a outros… até morrer numa sucessão de anos particularmente ruins de leituras. Acontece.

O tempo cronológico é só um marcador, um cronômetro, um mecanismo para nos enlouquecer. Quantos não conhecemos que viveram muito, se contarmos no relógio do coelho de Alice, mas que foram tão infelizes – muitas das vezes, algo mencionado por eles próprios a amigos e parentes – de uma forma ou de outra?

Teriam estes lido pouco?

Não tenho como aferir se os mais felizes são os que leem melhor – e eu nem digo mais, porque ler aos borbotões pode significar uma outra coisa: um esconderijo para a tristeza, e não um recanto para a alegria e o regozijo. Ler melhor é, na verdade, ler aqueles livros que conversam com o mais secreto em nós mesmos. Que nos fazem compreender as pessoas, o mundo, a vida, de uma maneira mais cheia de entroncamentos, bifurcações, estradas, trilhas. São aqueles livros que nos dão o mapa para que exploremos o imperceptível, ou que nos fazem perceber a importância de uma dor, ou de uma alegria, que sentíamos e vínhamos tentando esconder de nós mesmos e dos outros. Ler melhor talvez seja também fazer parte da criação artística do escritor, sentir-se coautor da obra, traduzi-la de tal maneira que possamos fazer da fresta na parede uma abertura escancaradamente nova, e magistral, para um universo que agora também nos pertence.

A mágica da literatura, que é vida, se dá quando abraçamos a possibilidade do pertencimento não como posse, mas como o entendimento de que somos um, e parte de um todo, feito de livros e leitores que caminham de mãos dadas, onde quer que estejam.

* Marco Severo é de Fortaleza, Ceará. Professor de inglês, tradutor, gosta mesmo é de escrever em português claro e de ler em todas as formas da língua. Autor dos livros Os escritores que eu matei (Editora Substância, 2015) e Todo naufrágio é também um lugar de chegada (Editora Moinhos, 2016).