Ensaios insólitos, Darcy Ribeiro

Está logo na capa, sob o título, o significado da palavra insólito: “Que não é habitual; estranho, desusado; contrário ao costume, às regras; incrível”. Poderia ser o significado do próprio autor: Darcy Ribeiro. Político de causa saudosa, a educação. Educador ele mesmo, criador de uma universidade utópica, não tivesse existido realmente, a Universidade de Brasília, criada em moldes completamente diferentes dos que determinam as universidades atuais no país, inclusive a própria (depois do golpe de 1964, a maioria dos intelectuais que formavam os cursos foi cassada). Etnólogo de longa e intensa vivência com tribos indígenas brasileiras, romancista. Quando Darcy escrevia ensaios era com essa mistura de homem estudioso, pensador livre e homem prático, portanto uma mistura insólita.

O livro, editado pela Global Editora, traz uma série de questionamentos dispostos em capítulos: “Obviedades”, “Indianidades” e “Diversidades”. Nos quais se encontram ensaios como “Os índios e nós”, “O abominável homem novo” e “Segunda carta de Pero Vaz de Caminha” – uma carta que Darcy criou como se fosse, em 1960, o primeiro homem a falar do Brasil, na expedição portuguesa de Pedro Álvares Cabral em 1500. Darcy nunca é óbvio, nem quando trata desse exato tema. No ensaio “Sobre o óbvio”, ele aborda em dado momento a elite brasileira, em um exemplo poderoso de como foi afiada sua escrita, agudo seu pensamento crítico, perfurante sua ironia.

“A primeira evidência a ressaltar é que nossa classe dominante conseguiu estruturar o Brasil como uma sociedade de economia extraordinariamente próspera. Por muito tempo se pensou que éramos e somos um país pobre, no passado e agora. Pois não é verdade. Essa é uma falsa obviedade. Éramos e somos riquíssimos! […] a renda per capita dos nossos escravos era, então, a mais alta do mundo. Nenhum trabalhador, naqueles séculos, na Europa ou na Ásia, rendia em libras – que eram os dólares da época – como um escravo trabalhando num engenho no Recife; ou lavrando ouro em Minas Gerais; ou, depois, um escravo, ou mesmo um imigrante italiano, trabalhando num cafezal em São Paulo. Aqueles empreendimentos foram um sucesso formidável. Geraram, além de um PIB prodigioso, uma renda per capita admirável. Então, como agora, para uso e gozo de nossa sábia classe dominante.

A verdade verdadeira é que, aqui no Brasil, se inventou um modelo de economia altamente próspero, mas de prosperidade pura. Quer dizer, livre de quaisquer comprometimentos sentimentais. A verdade, repito, é que nós, brasileiros, inventamos e fundamos um sistema social perfeito para os que estão do lado de cima da vida. Senão, vejamos. O valor da exportação brasileira no século XVII foi maior que o da exportação inglesa no mesmo período. O produto mais nobre da época era o açúcar. Depois, o produto mais rendoso do mundo foi o ouro de Minas Gerais que multiplicou várias vezes a quantidade de ouro existente no mundo. Também, então, reinou para os ricos uma prosperidade imensa. O café, por sua vez, foi o produto mais importante do mercado mundial até 1913, e nós desfrutamos, por longo tempo, o monopólio dele. Nesses três casos, que correspondem a conjunturas quase seculares, nós tivemos e desfrutamos uma prosperidade enorme. Depois, por algumas décadas, a borracha e o cacau deram também surtos invejáveis de prosperidade que enriqueceram e dignificaram as camadas proprietárias e dirigentes de diversas regiões. O importante a assinalar é que, modéstia à parte, aqui no Brasil se tinha inventado ou ressuscitado uma economia especialíssima, fundada num sistema de trabalho que, compelindo o povo a produzir o que ele não consumia – produzir para exportar –, permitia gerar uma prosperidade não generosa, ainda que propensa, desde então, a uma redistribuição preterida.

[…]

Com a própria industrialização, no passado e no presente, conseguimos fazer treta. Nisso parecemos deuses gregos. A treta, no caso, consistiu em subverter sua propensão natural, para não desnaturar a sociedade que a acolhia. A industrialização, que é sabidamente um processo de transformação da sociedade de caráter libertário, entre nós se converteu num mecanismo de recolonização. Primeiro, com as empresas inglesas, depois com as ianques e, finalmente, com as ditas multinacionais. O certo é que o processo de industrialização à brasileira consistiu em transformar a classe dominante nacional de uma representação colonial aqui sediada numa classe dominante gerencial, cuja função agora é recolonizar o país, através das multinacionais. Isso é também uma façanha formidável, que se está levando a cabo enorme elegância e extraordinária eficácia.”

* páginas 17-19 e 24

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