Poetas de janeiro na coleção Melhores Poemas
Note que, nas edições de Melhores Poemas da Global Editora, tão relevantes quanto os poemas e poetas são os autores e estudiosos que fazem a seleção e a apresentação de cada livro. Os casos desses três aniversariantes de janeiro são grandes exemplos. Antonio Carlos Secchin, da Academia Brasileira de Letras, é um dos mais importantes conhecedores da obra de João Cabral de Melo Neto. Marco Lucchesi, ele próprio poeta e professor na Faculdade de Letras da UFRJ, assim como Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras, é o responsável pela obra de Walmir Ayala. E sobre Casimiro de Abreu o prefácio pode ser chamado de hors concours, pois é de nosso maior cronista, Rubem Braga.
HORA DA CHUVA
O fino pente de chuva
corria pelo ar parado.
Dentro das casas o ruído
de folguedos invisíveis.Um gato numa janela,
umas velhas retorcidas,
uns cachorros sem latido
farejando ao nosso lado.“Meu branco, quer comprar peixe?”
Passa o cesto carregado.
E andamos como se a chuva
fosse o meio favorito
do nosso ser exilado.Naquela hora de vidro
a chuva era como um leque
ao nosso rosto abrasado.
E tudo era tão perfeito,
o tempo tão acabado
que chover era uma forma
de se sonhar acordado.Molhava nossos tecidos
aquela chuva tão velha
como o bordado das telhas.
Não tão velhas quanto eternas
aquelas redes de tetos
que ataram laços ardentes
de afetos e desafetos.“Meu branco, quer comprar peixe?”
Passa o cesto carregado
de despojos que na chuva
intentam ser restaurados.E somos, silenciosos,
como coisa deste mundo,
como pétalas de flor
num velho livro fechado.
Walmir Ayala nasceu em Porto Alegre, em 4 de janeiro de 1933.
“Uma poesia inquieta, movida pelo andamento daquela retórica boa – apontada por Mário Faustino – entre Whitman e os Salmos, Agostinho e Camus. Um salto da História para a Consciência. O corpo e a palavra. O instinto e a razão. O Centauro iluminando suas contradições” – na apresentação de Marco Lucchesi.
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MINHA TERRA
Minha terra tem palmeiras
onde canta o sabiá.
Gonçalves DiasTodos cantam sua terra,
Também vou cantar a minha,
Nas débeis cordas da lira
Hei de fazê-la rainha;– Hei de dar-lhe e realeza
Nesse trono de beleza
Em que a mão da natureza
Esmerou-se em quanto tinha.Correi prás bandas do sul:
Debaixo dum céu de anil
Encontrareis o gigante
Santa Cruz, hoje Brasil;
– É uma terra de amores
Alcatifada de flores
Onde a brisa fala amores
Nas belas tardes de Abril.Tem tantas belezas, tantas,
A minha terra natal,
Que nem as sonha um poeta
E nem as canta um mortal!
Casimiro de Abreu nasceu em Barra de São João, RJ, em 4 de janeiro de 1839.
“O rapazinho brasileiro conseguiu ser acolhido nas melhores publicações literárias portuguesas, inclusive a Ilustração Luso-Brasileira e o Almanaque de Lembranças, em que escreviam Alexandre Herculano e Camilo Castelo Branco. Apesar de tudo isso, estava sempre a falar de saudades.” – na apresentação de Rubem Braga.
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UMA FACA SÓ LÂMINA
(ou: serventia das ideias fixas)
(1955)Assim como uma bala
enterrada no corpo,
fazendo mais espesso
um dos lados do morto;assim como uma bala
do chumbo mais pesado,
no músculo de um homem
pesando-o mais de um lado;qual bala que tivesse
um vivo mecanismo,
bala que possuísse
um coração ativoigual ao de um relógio
submerso em algum corpo,
ao de um relógio vivo
e também revoltoso,relógio que tivesse
o gume de uma faca
e toda a impiedade
de lâmina azulada;assim como uma faca
que sem bolso ou bainha
se transformasse em parte
de vossa anatomia;qual uma faca íntima
ou faca de uso interno,
habitando num corpo
como o próprio esqueletode um homem que o tivesse,
e sempre, doloroso,
de homem que se ferisse
contra seus próprios ossos.
João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife, PE, em 9 de janeiro de 1920.
“Radicalizando a poética da depuração exercitada em Psicologia da composição, João Cabral escreve, em 1955, Uma faca só lâmina, longo poema de 88 estrofes de quatro versos (a quadra é o tipo de estrofação preponderante em sua obra). É texto altamente conceitual, elaborado em torno de três elementos – faca, bala, relógio […]” – na apresentação de Antonio Carlos Secchin.
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