Nara Leão nas playlists de Loyola Brandão e Caio F. Abreu

O título é uma provocação. PlaylistPlaylist? Esse termo é usado agora, quando música não vem mais num objeto meio que sagrado como o vinil, até mesmo o CD, com capa & cara, texto & textura. Há vantagens, claro: o acesso mais fácil pela internet, mais barato, de graça até – a cada tempo seu momento. O que importa é Nara Leão, motivo que une dois contos completamente diferentes, de dois grandes escritores brasileiros publicados pela Global Editora. “Camila numa semana”, de Ignácio de Loyola Brandão, está no livro Pega ele, silêncio, publicado pela primeira vez em 1969. “Mel & girassóis” foi publicado na década de 1980 e está na seleção de Melhores Contos Caio Fernando Abreu. Nara, para ambos, tocava em vitrola, não no computador, e deu o tom desses textos. Embaixo dos dois títulos vem escrito entre parênteses:

(ao som de Nara Leão)

Não é condição para entrar nas histórias. Mas seguir a sugestão só engrandece a experiência.

“Se alguém perguntar por mim
Diz que fui por aí”

“Nesse livro está um conto, dos primeiros contos saídos no Brasil mostrando como a burguesia se movimentou em 64 para derrubar Jango. Nada disso foi salientado”, declarou certa vez Loyola em entrevista à escritora Edla van Steen, na série de livros chamada Viver&Escrever (L&PM).

No conto há a história de amor entre um jornalista e uma jovem estudante. Ruas de São Paulo. Eles começam a conviver, atraídos, o clima de experimentação e busca de liberdade próprios dos anos 1960. Viajam juntos por causa do trabalho dele num grande jornal – Curitiba, Belo Horizonte. Tropeçam nas manifestações populares de direita e de esquerda, em torno do empenho do governo João Goulart de fazer uma efetiva reforma agrária, principalmente. Quando acontece o Golpe de Estado, o jornal em São Paulo é ameaçado. A violência ronda os jornalistas. Os jovens fogem da perseguição dos militares para uma casinha no interior e a relação deles se aprofunda. Loyola faz pulsar tanto os personagens e seus dramas pessoais quanto a situação crítica no Brasil em 1964.

“Era como se houvesse um grande acontecimento festivo. Apenas. Pois as pessoas passavam com os transistores aos ouvidos; enquanto outros paravam diante das grandes lojas de eletrodomésticos, vendo as televisões ligadas, e ouvindo os rádios, e passando para a frente as informações, e depois seguindo, calmamente. Corações de funcionários, comerciários, bancários, escriturários, serventes, secretárias, chefes de seção, contínuos, publicitários, balconistas, corretores, agentes imobiliários, especuladores, caixas, vendedores, representantes, seguiam atentos as palavras. E também os outros. Aqueles que já sabiam. Antes de todos. Nem precisavam rádios ou informações. Aguardavam tranquilos, por trás de suas mesas. Em escritórios de vigésimo andar, tapetes macios, ditafones, secretárias esperando nas alas contíguas. Alguns descortinavam a visão da cidade, orgulhosos do São Paulo trabalhador e infatigável.”

trecho/ página 78

Nara Leão participa desde o início. Tanto em conversas dos personagens quanto em trechos reproduzidos de músicas que ela cantou, principalmente as de seu primeiro disco, Nara, de 1964. “Berimbau”, “Vou por aí”, “Consolação”, entre outras que podem ser escutadas neste site.

“E se foi, pedindo desculpas. E mal ele saiu nos atiramos aos bolos, comemos tudo, bebemos o café. E ela se estendeu no sofá, rindo, e pedindo para que pusesse música, a mesma música de Nara Leão.

                            ‘porque são tantas coisas azuis;

                            há tão grandes promessas de luz;

                            tanto amor para amar que a gente nem sabe’”

trecho/ página 105

O conto de Caio Fernando Abreu é, por característica do autor, mais lírico. Ambos têm também a ironia como marca, mas desenvolvida de formas muito particulares. A de Loyola mais ácida. A de Abreu mais cínica. Ironia, essa espécie de medidor de inteligência e perspicácia. Fere tanto quanto encanta.

“Mel & girassóis” se passa num hotel de luxo numa praia de turistas – pode ser no Brasil, no México, no Oceano Índico. Um homem e uma mulher, meio amargos de separações, meio adocicados de esperanças e vontades.

“Morenos de calças brancas e peito nu tocando violão jogados em redes, também havia. E moças morenas de cabelos soltos, vestidos estampados de flores miudinhas, caminhando tão naturais entre as cerâmicas que tudo aquilo parecia de verdade. Aquela coisa rústica: todos morenos, ardentes, arfantes, ecológicos, contratados pelo hotel. Vieram caminhando por esse corredor, ele de branco, ela de preto, até entrarem no que chamavam, certa pompa só medianamente convincente, de O Grande Salão.”

Se nos anos 1960 de Loyola o casal se joga sem medo um no outro, o par mais maduro de Abreu nos anos 1980 é mais travado, cheio de medos, inclusive da Aids, que mostrou os dentes nessa época, matou muita gente, tristemente matou depois o próprio escritor.

“Conversaram, no oitavo ou nono dia. Nadaram juntos na praia, primeiro. Depois ela sentiu sede, ele pagou outro suco de limão, tomou outra cerveja. Deitados na areia, lado a lado, falaram. Se você quer que eu conte, repito, mas não é nada original, garanto. Ela era qualquer coisa como uma Psicóloga Que Sonhava Escrever Um Livro; ele, qualquer coisa como um Alto Executivo Bancário A Fim de Largar Tudo Para Morar Num Barco Como O Amyr Klink.”

Nara entra mais no fim da história, quando tudo indica que os dois vão finalmente…

“Ele afastou-a um pouco, para vê-la melhor. Ela sacudiu os cabelos, olhou bem nos olhos dele. Uma espécie de embriaguez. Não só espécie, tanta vodca com abacaxi. Eles pararam de dançar. Nara Leão continuava cantando. A luz da lua entrava pela janela. Aquela brisa morna, que não teriam mais no dia seguinte.”

Caio Fernando Abreu escreveu esse conto na tênue linha da ironia, pegando elementos do que é considerado brega, mas mergulhando nos sentimentos e expectativas dos personagens, revelando uma paixão que nasce única, ainda que num ambiente tão clichê. Brincadeira de bom gosto e que deu muito certo.

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