Deu no rádio: Loyola, Darcy e Marcos Rey

Ao mesmo tempo que minguam os cadernos especializados em literatura nos grandes jornais brasileiros, aqui e ali há importantes programas de TV dedicados aos livros e autores. O mesmo na internet, em vídeo ou não. Mas no rádio sempre foi mais raro. Nos anos 1980 foi altamente inovadora a iniciativa de Claudiney Ferreira e Jorge Vasconcellos, que criaram o programa Certas Palavras. Como conta o jornalista e escritor Humberto Werneck, o programa que começou na Gazeta pingou pelo dial paulistano e sobreviveu fazendo sucesso até o fim da década de 1990. Em 1990 também virou livro, pela editora Estação Liberdade, com a reprodução em texto de 26 entre centenas de entrevistas realizadas. Entre os entrevistados, três autores que hoje têm sua obra publicada pela Global Editora: Darcy Ribeiro, Marcos Rey e Ignácio de Loyola Brandão. Abaixo, trechos em que eles falam de seus livros e da literatura.

com Ignácio de Loyola Brandão, fevereiro de 1981

Certa Palavras: Temos aqui uma pergunta do Caio Túlio (Costa), secretário da redação do jornal Leia Livros, a respeito da arte engajada.

Caio Túlio: Loyola, vou fazer a mesma pergunta que fiz para Lygia Fagundes Telles. O secretário-geral do Leia Livros, Cláudio Abramo, costuma dizer que no Brasil os literatos não são geralmente engajados, o que, obviamente, exclui o Zero. Diz também que a melhor literatura deste século é a literatura engajada. O que você acha disso?

Certas Palavras: Antes de responder a essa pergunta, seria interessante você colocar seu ponto de vista sobre o que seja a literatura engajada e se você realmente inclui Zero nessa categoria.

Loyola: Acho difícil qualquer escritor consciente no Brasil, no Terceiro Mundo, ou no mundo inteiro, fazer uma arte que não seja engajada. Ser engajado significa tomar parte da sociedade em que se vive. É impossível o escritor não tomar parte na sociedade, ou ele não é parte dessa sociedade. No momento em que eu escrevo uma história de amor, essa história de amor está     sujeita a toda uma estrutura que gira em torno desses personagens. Eu diria que o Zero é um livro engajado, que Bebel é um livro engajado. Cadeiras proibidas, que leva um ritmo de fábula, é um livro engajado. É um livro de fábulas porque veio depois de um livro censurado. E como eu dizia coisas sobre a realidade brasileira, como eu denunciava uma realidade que oprimia, que estava destruindo o homem, tive de empregar recursos de fábula para despistar o censor. Então é um livro engajado. Quase todos os meus livros são engajados. Quase toda a literatura brasileira moderna, atual, é engajada. É engajada porque reflete a realidade brasileira, coloca o homem brasileiro no centro. Na medida em que você coloca um homem que está dentro de um sistema político, está fazendo “literatura política”. A gente não pode confundir literatura engajada e livro político com chatice e panfletismo. Panfleto é outra coisa. As pessoas às vezes confundem e dizem que é um livro político. Não, não é um livro político. Às vezes o panfleto é de muito má qualidade. Panfleto tem um determinado momento, determinado uso. É realmente para você excitar as pessoas a determinadas coisas, ou para esclarecê-las sobre determinadas coisas. Literatura é muito diferente disso.

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com Marcos Rey, abril de 1981

Certa Palavras: Marcos, você lançou o segundo livro cerca de sete anos depois do primeiro. Esse livro, Café na cama, fala exatamente dos bastidores do rádio e da televisão e foi um sucesso, vendeu rapidamente cinco ou seis edições. A que se deve esse sucesso, não sei se repentino, do Marcos Rey na literatura?

Marcos Rey: É interessante, veja como são as coisas. Quando eu lancei Um gato no triângulo, ele foi um grande sucesso de crítica e não foi sucesso de venda. A primeira edição custou anos para vender. Então as editoras começaram a dizer que eu era um bom autor mas sem comunicabilidade com o público. Muito bem, sete anos depois eu lanço Café na cama. Não esperava que o livro vendesse, e houve até quem aconselhasse a não publicá-lo, que era uma coisa limitada falar sobre televisão, rádio, cinema. Foi um sucesso inesperado para todo mundo, para o editor, para mim. Vendeu 30, 40 mil livros em poucos meses e ainda vende no Círculo do Livro (em 1981), voltou a ser sucesso. A crítica, nessa ocasião, que tinha me prestigiado tanto com o Gato no triângulo, se retraiu como se eu fosse um mercenário que tivesse feito um livro para ganhar dinheiro. Aliás, eu nem ganhei dinheiro com esse livro, por várias razões, a editora que faliu, essas coisas todas. Mas acho que nesse livro, que não é dos meus melhores, eu encontrei meu verdadeiro cenário: São Paulo. E anos depois, relendo Café na cama, reconheço que ele de fato é um grande depoimento, uma reportagem completa sobre a década de 50. Acho que não se encontra outro livro que fale tanto da década de 50, principalmente de sua vida noturna. Se na ocasião ele não tinha aparentes virtudes literárias, hoje tem indiscutíveis qualidades históricas.

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com Darcy Ribeiro, setembro de 1981

Certa Palavras: Darcy Ribeiro, como é que você é ficcionista, como é que surgiu essa necessidade de escrever um livro de ficção? Você poderia fazer uma comparação entre Maíra e O mulo?

Darcy Ribeiro: Veja, tem uma porção de coisas aí que mesmo eu acho bizarras. Muita gente acha estranho que eu, antropólogo com certo êxito, meio conhecido, tenha saído da antropologia para a literatura. Eu não saí, continuo sendo o antropólogo que sou; fiz literatura também, mas muita gente estranha. Outra coisa que estranham – a mim também parece uma coisa extravagante –, é que eu sou um homem urbano, de Copacabana, vivendo numa praia tão bonita, e como que pode sair de dentro do meu peito uma coisa tão rústica como O mulo, esse ser rural, ou como pode sair um índio, que eu encarno em Maíra? Na realidade as coisas passaram-se assim comigo. Esses dois livros foram concebidos no exílio. O exílio é uma experiência terrível. Você passa ano após ano esperando a cada seis meses poder voltar, durante mais de uma década, pensando no seu país, a única forma de voltar a si mesmo. Você está num país estrangeiro e não é imigrante, não quer ficar lá; aquela gente você apenas suporta por algum tempo, porque acha que nos próximos seis meses vai voltar. O exílio é um caruncho na sua biografia, mês por mês vão te comendo os anos, você deixa de influir no seu povo, deixa de viver a sua vida verdadeira para viver a do outro. Então quem vive no exílio pensa muito que está aqui, e o exercício que eu fiz para voltar, porque estava proibido de vir, foi escrever um romance. Escrevi Maíra para voltar a estar no Brasil, estar no Brasil que mais me interessou, que mais me comoveu: o Brasil dos índios com quem eu convivi durante mais de dez anos, que foi meu período de passagem dos vinte e tantos para os trinta e tantos anos. Maíra foi um retorno à vida que eu tinha vivido na solaridade da Floresta Amazônica, com índios desnudos, com uma gente que tem uma outra visão do mundo. Por exemplo, nós estamos impregnados de uma herança terrível, judaica e cristã, de considerar que todo gozo é pecaminoso, é luxúria ou gula. Para os índios é o contrário; o deus dos índios, Maíra, que dá nome ao meu livro, de vez em quando desce aqui, entra no corpo das pessoas e usa os olhos para ver o amarelo. Ele está com saudades de ver porque, como deus, não pode ver; só como homem ele pode ver o amarelo, quer dizer, ele vem ver os tons do amarelo, vem comer para sentir o gosto da pimenta, o gosto do sal, o gosto do mel. Então ele usa a boca do homem para sentir essa beleza que é o gosto, vem fazer amor com as mulheres, vem gozar com as mulheres, também. Então um deus capaz de fazer o amor não é uma beleza?