Aniversariantes de agosto na coleção Melhores Poemas

Imagine Paulo Leminski entregando um presente japonês a Cora Coralina (e imagine que os doces da festa ela própria teria feito). Imagine num café da avenida Paulista o concretista Haroldo de Campos com Tomás Antonio Gonzaga, português nascido no século XVIII. E podemos, sorrindo, criar a imagem dos maranhenses Gonçalves Dias e Nauro Machado olhando um jogo de bola, num fim de tarde nas praias de São Luís. As conversas na poesia às vezes são mais claras, outras vezes muito difíceis de se detectar, mas elas acontecem o tempo todo: pela influência através dos tempos, mesmo tão diferentes os estilos. Outro exercício de imaginação que podemos propor é ler esses poemas abaixo, dos poetas aniversariantes de agosto na coleção Melhores Poemas da Global Editora, com a luz da atualidade, além do contexto histórico. Os resultados são surpreendentes. Boa leitura!

Velha canção
(Voltas)

Não sou desses gênios duros
Inimigos do prazer
Que julgam que a humanidade
Só nasceu para gemer;

Gosto de queimar incenso
Sobre as aras da alegria,
Julgo que ser louco a tempo
Também é sabedoria.

Tudo no mundo é vaidade,
Disse o grande Salomão…
Ele pensou talvez isto
Em noite de indigestão…

Venham raivosos guerreiros
Abater espessos muros,
Briguem as leis, os legistas,
Não sou desses gênios duros.

Quero festins, onde as belas
Me façam enlouquecer;
Desprezo os ilustres mochos
Inimigos do prazer.

Prosperidade na terra
É sonho que pouco dura,
Tudo definha e fenece
Na lousa da sepultura.

Canto as mulheres e as musas,
As venturas, o prazer,
A vida é triste mentira,
Gozarei até morrer.

Que importa que as turbas loucas
Me cubram de maldições?
Pobres loucos! Não concebem
De um festim as seduções!

Meditem os estadistas
Sobre casos mal seguros,
Trato de cousas mais leves,
Não sou desses gênios duros.

Discurse o padre na igreja
Batendo uma seita esquiva,
E volte à casa alta noite
Tendo jantado a saliva!

Eu por mim penso que o mundo
Por pouco vai-se a perder,
Por causa de tantos grulhas
Inimigos do prazer.

Só me falam nos antigos
Abraão, Isaac, Jacó!…
Eles tinham cem mulheres!
E eu?… Eu tenho uma só!

É verdade que essa mesmo
Me tem dado que fazer,
Mas nem por isso tornei-me
Inimigo do prazer.

Fagundes Varela nasceu em Rio Claro, RJ, dia 17 de agosto de 1841.

“[…] não haveria exagero em perceber na sua poesia a mais complexa construção literária de nosso romantismo. Na ânsia de lançar-se em todas as direções, Varela, mesmo em seus equívocos, corporifica, em grau máximo, a tensão entre a vivência inexorável da precariedade e a sede inextinguível do absoluto” – na apresentação de Antonio Carlos Secchin.

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À hora do almoço

Pelo sapê furado da palhoça
Milhões de astros agarram-se luzindo;
O pai, há muito, madrugou na roça:
A mãe prepara o almoço. – O sol é lindo.

Canta a cigarra; o porco cheira; engrossa
O fumo dos tições; – anda zunindo
À porta um maribondo; e fazem troça
As crianças com um ramo o perseguindo.

Correm, chilram, vozeiam, tropeçando
Num velho pote; – a mãe, zangada, ralha.
A avó lhes lança o olhar inquieto e brando.

No chão um galo ajunta o milho e o espalha,
Enquanto a um canto, as penas arrufando,
Põe a galinha num jacá de palha.

Luís Delfino nasceu em Desterro (nome antigo de Florianópolis), SC, dia 25 de agosto de 1834.

“Bastante frequente na poesia de Luís Delfino é a tendência reflexiva, o caráter filosófico, externando as inquietações, vacilações, incertezas, dúvidas e ansiedades do poeta em questões metafísicas” – na apresentação de Lauro Junkes.

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Sombras

Tudo em mim vai se apagando.
Cede minha força de mulher de luta em dizer:
estou cansada.

A claridade se faz em névoa e bruma.
O livro amado: o negro das letras se embaralham,
entortam as linhas paralelas.
Dançam as palavras,
a distância se faz em quebra-luz.

Deixo de reconhecer rostos amigos, familiares.
Um véu tênue vai se incorporando no campo da retina.
Passam lentamente como ovelhas mansas os vultos conhecidos
que já não reconheço.

É a catarata amortalhando a visão que se faz sombra.

Sinto que cede meu valor de mulher de luta,
e eu me confesso:
estou cansada.

Cora Coralina nasceu em Goiás Velho, GO, dia 20 de agosto de 1889.

“À primeira vista, fato intrigante para um estudioso da obra poética de Cora Coralina é a atualidade de seu discurso literário. Sobretudo se comparada à sua contemporânea Leodegária de Jesus, primeira mulher a publicar livro de poemas em Goiás” – na apresentação de Darcy França Denófrio.

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Parada cardíaca

      Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure
vem de dentro

       Vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito
sentir é muito lento

Paulo Leminski nasceu em Curitiba, PR, dia 24 de agosto de 1944.

“Um aspecto marcante na obra poética de Paulo Leminski é o esmero que o autor trabalha o poema enquanto mancha gráfica, a atenção que dispensa à palavra enquanto elemento significante e à letra enquanto corpo tipográfico variante em sua carga comunicativa” – na apresentação de Fred Góes e Álvaro Marins.

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I-Juca-Pirama

 […]

              IV

Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo Tupi.

Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci:
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.

Já vi cruas brigas,
De tribos imigas,
E as duras fadigas
Da guerra provei;
Nas ondas mendaces
Senti pelas faces
Os silvos fugaces
Dos ventos que amei.

Andei longes terras,
Lidei cruas guerras,
Vaguei pelas serras
Dos vis Aimorés;
Vi lutas de bravos,
Vi fortes – escravos!
De estranhos ignavos
Calçados aos pés.

E os campos talados,
E os arcos quebrados,
E os piagos coitados
Já sem maracás;
E os meigos cantores,
Servindo a senhores,
Que vinham traidores,
Com mostras de paz.

Aos golpes do imigo
Meu último amigo,
Sem lar, sem abrigo
Caiu junto a mi!
Com plácido rosto,
Sereno e composto,
O acerbo desgosto
Comigo sofri.

Meu pai a meu lado
Já cego e quebrado,
De penas ralado.
Firmava-se em mi:
Nós ambos, mesquinhos,
Por ínvios caminhos,
Cobertos d’espinhos
Chegamos aqui!

O velho no em tanto
Sofrendo já tanto
De fome e quebranto,
Só qu’ria morrer!
Não mais me contenho,
Nas matas me embrenho,
Das frechas que tenho
Me quero valer.

Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:
O cru dessossego
Do pai fraco e cego,
Em quanto não chego,
Qual seja, – dizei!

Eu era o seu guia
Na noite sombria,
A só alegria
Que Deus lhe deixou:
Em mim se apoiava,
Em mim se firmava,
Em mim descansava,
Que filho lhe sou.

Ao velho coitado
De penas ralado,
Já cego e quebrado,
Que resta? – Morrer.
Em quanto descreve
O giro tão breve
Da vida que teve,
Deixai-me viver!

Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro;
Se a vida deploro,
Também sei morrer.

[…]

Gonçalves Dias em Caxias, MA, em 10 de agosto de 1823.

“Um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, Gonçalves Dias é também considerado pela crítica e história literária o fundador da poesia nacional” – na apresentação de José Carlos Garbuglio.

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Travesseiro

Todos os meus tijolos,
minhas pátrias e raízes,
morrerão contigo, ó Alma
eternamente vencida
no tombar das estações:
levantarei ervas apenas
dos meus lábios iletrados
no silêncio do infinito
alfabeto da tua morte.
Não resta nada, após tudo.
– Expectação, ó minha pátria!

Nauro Machado nasceu em São Luís, MA, em 2 de agosto de 1935.

“Em Nauro Machado, a frase poética se faz instrumento de um dizer essencial. Há como que em seus versos a negação do que é, lembrando a alteridade do que poderia ser. Sua poesia define-se, assim, como crítica da cultura, como força anti-ideológica, antimercadológica (por excelência, uma espécie de antimercadoria), enfim, como poesia de resistência” – na apresentação de Hildeberto Barbosa Filho.

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v e m      n a v i o
v a i        n a v i o
v i r         n a v i o
v e r         n a v i o
v e r        n ã o      v e r
v i r         n ã o       v i r
v i r         n ã o       v e r
v e r        n ã o       v i r
v e r    n a v i o s

Haroldo de Campos nasceu em São Paulo, dia 19 agosto 1929.

“Não é possível evocar Haroldo de Campos sem evocar a Poesia Concreta, ou seja, o primeiro movimento de vanguarda brasileiro de repercussão internacional, surgido nos anos 1950, em São Paulo” – na apresentação de Inês Oseki-Dépré.

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Vou-me, ó bela, deitar na dura cama

Vou-me, ó bela, deitar na dura cama,
de que nem sequer sou o pobre dono;
estende sobre mim Morfeu as asas,
e vem ligeiro o sono.

Os Sonhos, que rodeiam a tarimba,
mil cousas vão pintar na minha ideia;
não pintam cadafalsos, não, não pintam
nem uma imagem feia.

Pintam que estou bordando um teu vestido;
que um menino com asas, cego e loiro,
me enfia nas agulhas o delgado,
o brando fio de oiro.

Pintam que entrando vou na grande igreja;
pintam que as mãos nos damos, e aqui vejo
subir-me à branca face a cor mimosa,
a viva cor do pejo.

Pintam que nos conduz doirada sege
à nossa habitação; que mil Amores
desfolham sobre o leito as moles folhas
das mais cheirosas flores.

Pintam que dessa terra nos partimos;
que os amigos, saudosos e suspensos
apertam nos inchados, roxos olhos
os já molhados lenços.

Pintam que os mares sulco da Bahia,
onde passei a flor da minha idade;
que descubro as palmeiras, e em dois bairros
partida a grã cidade.

Pintam leve escaler, e que na prancha
o braço já te of’reço, reverente;
que te aponta co dedo, mal te avista,
amontoada gente.

Aqui, àlerta! grita o mau soldado;
e o outro àlerta estou! lhe diz gritando.
Acordo com a bulha… Então conheço
que estava aqui sonhando.

Se o meu crime não fosse só de amores,
a ver-me delinquente, réu de morte,
não sonhara, Marília, só contigo
sonhara de outra sorte.

Tomás Antonio Gonzaga nasceu em Portugal, dia 11 de agosto de 1744.

“Em Gonzaga, é interessante o contraste entre as precauções mitológicas com que celebra a mulher e o senso de realidade com que a integra no panorama da vida. Mais de uma lira dedicada à tarefa quase didática de mostrar à bem-amada a naturalidade do amor, mostrando-lhe a ordenação das coisas naturais. E, por outro lado, valorizar a noção civil da vida social, salientando a nobreza das artes da paz, o falso heroísmo da violência, a ordem serena da razão” – na quarta capa de Antonio Candido.

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